quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A ética do aborto

Revista Filosofia, Ciência e Vida, nº 65 (nov.- 2011), pp. 46-55
  
Normalmente quem condena o aborto também condena qualquer lei que permita sua prática segura; e quem defende a descriminalização não vê nenhum problema ético no aborto. Uns olham somente para o feto, outros somente para a mulher. É possível, porém, considerarmos o aborto uma coisa ruim e ao mesmo tempo não concordar que ele seja um crime punível com prisão. Podemos ser contra o aborto, mas a favor do direito da mulher ao aborto.
Em geral, contra o aborto, argumenta-se que: (a) é errado matar um ser humano inocente (premissa maior, normativa); (b) um feto humano é um ser humano inocente (premissa menor, factual); (c) portanto, é errado matar um feto humano (conclusão). Em favor do direito ao aborto, em geral, argumenta-se contra a segunda premissa acima: um feto humano não seria, desde o início da gestação, um ser humano desenvolvido, pois ele se forma gradualmente.

O erro de matar uma pessoa humana e o erro de matar um feto humano precoce
Tirar a vida de uma pessoa humana é um dos maiores danos que se pode causar a ela: a) se a morte subtrai um futuro valioso, cheio de benefícios que seriam vividos pela vítima, b) se a pessoa não quer ser morta, c) se a morte também causa danos à família e à sociedade da vítima, d) e se o interesse da vítima em continuar vivendo for protegido como um direito quase-absoluto.
Mas por causa do erro de matar alguém como nós em geral, algumas pessoas pensam que também é errado tirar a vida do feto. Em alguns aspectos o feto se parece com um de nós, por exemplo, ele está vivo, é um ser humano. Mas em outros aspectos ele não se parece com um de nós: o embrião não é ainda um organismo, o feto precoce não tem a capacidade de sentir e ser consciente, mesmo um feto desenvolvido ainda não é autoconsciente e autônomo.
Há várias maneiras de justificar por que seria errado terminar uma vida fetal, mesmo em desenvolvimento, e dentre elas, a mais forte é a que condena o aborto porque terminar a vida fetal subtrairia o futuro valioso para tal ser em desenvolvimento, já que sem o aborto ele teria um futuro como o nosso. Pensamos que um feto humano tem um futuro normalmente promissor pela frente, cheio das experiências que tornam uma vida normalmente boa de ser vivida. Ora, tirar a vida do feto é impedir que este futuro valioso ocorra e é impedir que alguém como nós tenha este futuro. Isso pode ser causar um grande dano ao feto, pois uma explicação do erro de nos matar reside na perda de todos os anos de vida pela frente que teríamos (cf. Marquis 1989).
Porém, terminar uma gestação, ao menos quando o feto está em formação, talvez não seja prejudicar alguém, mas apenas deixar de preparar e beneficiar uma pessoa, no futuro. Se interferimos no processo de reprodução impedindo que um esperma fecunde um óvulo, também estamos impedindo que alguém, no futuro, aprecie uma vida valiosa. Uma vida valiosa começa quando se pode apreciá-la ou experimentá-la de algum modo: só com a capacidade para experimentar os bens ou benefícios da vida, um ser pode ser beneficiado ou prejudicado.
Além disso, se acordássemos num hospital com nosso corpo ligado ao corpo de outra pessoa que só poderá sobreviver se tal ligação for mantida por nove meses, podemos legitimamente pedir para nos desligar. Podemos ser bons samaritanos e aceitar a ligação, mas isso não seria uma obrigação, mesmo que a pessoa que depende de nosso organismo tenha direito à vida: este direito não lhe dá direito sobre meu corpo. O mesmo valeria para o aborto. (cf. Thomson 1971)
O dano da morte é uma função das boas experiências que se perdem no futuro com ela, mas é também uma função de quanto o ser que morre está conectado àquele futuro, tem interesse nele, e no caso dos fetos, tal interesse é bem fraco. Por exemplo, se olhamos para um jovem cheio de planos para a próxima década, podemos dizer que ele está fortemente ligado ao seu futuro, e que, retrospectivamente, quando for mais velho, olhará para traz como o mesmo sujeito. A morte para ele é uma perda enorme.
Já se olhamos um feto, no período em que ele não é capaz de sentir ou ser consciente, podemos dizer que não tem interesse em seu futuro, e que não expressa ou manifesta nenhum interesse. A morte de um feto pré-sensciente não é uma grande perda para ele, pois a ligação (psicológica) entre o ele e o ser que estaria vivo no futuro é inexistente. Senão a falta de uma fecundação seria também uma perda muito grande, pois seria maior ainda que a morte de um feto tardio, mas seria uma enorme perda sem vítima alguma. (cf. DeGrazia 2005: 287-288; McMahan 2002: 192-194).

Quando um feto humano é um ser humano inocente¿
A segunda premissa do argumento contra o aborto diz que o feto é um ser humano inocente. Se não é certo matar uma criança inocente (o caso exemplar de um ser humano vulnerável), então também não é certo matar um feto. Mas isso depende do feto ser uma criança, ou ao menos, ser como uma criança nas suas propriedades essenciais.
Porém, se a formação de um ser humano for uma questão de desenvolvimento gradual, devemos perguntar quando, neste processo gradual, o desenvolvimento do feto se completou suficientemente: se no início, no meio, no final da gestação, ou após o nascimento. Pode ser que em problemas como o aborto e a eutanásia, que envolvem noções de vida e morte, não faça sentido sermos tudo ou nada. Talvez seja melhor olharmos as coisas como gradualistas. O filósofo Simon Blackburn, tratando do início da vida, escreveu o seguinte:
“O debate público é conduzido freqüentemente como se fosse uma questão de preto no branco, um caso de certo ou errado em absoluto. Você deve ser ou pró-vida ou pró-escolha. Ou você acredita na direito à vida do nascituro, ou você acredita no direito da mulher de controlar seu próprio corpo. Um bom questionamento filosófico começa perguntando se esta visão em preto e branco não é uma ilusão, não é o resultado de lentes morais que impõe o preto e branco numa paisagem de graus diferentes de cinza. Afinal, o fato biológico é que o desenvolvimento fetal é gradual. O ponto de partida unicelular ou zigoto é algo bem distinto do bebê a nascer. A complexidade emerge gradualmente, hora após hora, dia após dia.” (Blackburn, 2001, pp. 59-60)
A posição chamada de concepcionista, por exemplo, defende que um novo ser humano começa instantaneamente na concepção, quando óvulo e espermatozóide se fundem. É uma posição do tipo tudo ou nada, preto no branco. Em geral é contrária ao direito ao aborto. Já a posição chamada senscientista ou neurológica entende que um ser humano como nós começa apenas quando os órgãos principais, especialmente o cérebro, estiverem formados e funcionando conjugadamente a ponto de gerar a capacidade de sentir e ser consciente.  É uma posição do tipo graus variados de cinza, gradualista. Está mais à vontade com o direito ao aborto, ao menos quando feito antes do desenvolvimento da sensciência.
Quando um feto humano passa a ser sensciente¿ Segundo a melhor ciência disponível, isso só pode ocorrer quando conexões sinápticas se formam entre os neurônios do córtex cerebral. O ponto inicial mais recente disto se dá em torno da vigéssima semana de gestação, mas é muito provável que a sensciência mesmo não ocorra antes de completado o sexto mês. (cf. Korein 1997; Glover & Fisk 1999). DeGrazia nos informa que “a evidência neurológica sugere que um feto vem a ser sensciente em algum tempo entre o quinto e o sétimo mês da gestação” (2005: 279).
O filósofo Jeff Mcmahan é o representante mais típico desta posição senscientista, e para ilustrá-la, vejamos como ele conjuga uma concepção gradualista da formação do ser humano, e o problema da ilicitude ou licitude do aborto:
“Definamos aborto precoce como o aborto que é feito antes daquele ponto – isto é, o ponto em que o cérebro fetal adquire a capacidade para sustentar a consciência e no qual um de nós conseqüentemente começa a existir em associação com o organismo fetal. [Se esta abordagem está correta] não há ninguém para ser afetado para melhor ou para pior por um aborto precoce senão a própria mulher, seu parceiro, ou alguém mais que pudesse se importar com ela ou com sua descendência possível. Um aborto precoce – aquele feito até o meio da gestação mais ou menos – não mata ninguém; ele apenas impede alguém de vir a existir. Neste aspecto, ele é relevantemente igual à contracepção e totalmente diferente do matar uma pessoa. Não há, novamente, ninguém para ser morto.” (McMahan, 2002, p. 267)

Um problema importante é se só seres capazes de sentir e experimentar o mundo à sua volta podem ser, literal ou realmente, prejudicados, sofrer dano, no sentido relevante da expressão. Para McMahan, sem as capacidades subjetivas que tornem um ser sensível à dor e ao sofrimento, assim como ao prazer e à felicidade, tal ser, mesmo que vivo, ainda não sofre nada, nem dano, nem benefício, seja o que for que lhe façamos.
É claro que aceitar o gradualismo e a idéia de que a vida humana propriamente dita (biológica e psicológica) não começa instantaneamente em um dado ponto da gestação, deixa esta posição, da neutralidade do aborto precoce, mais forte. Mas poderíamos pensar que o feto precoce é como um ser humano que não sente e não tem consciência hoje, mas foi capaz disto um dia, ou quem sabe, não é momentaneamente capaz disto, mas ainda o é no futuro¿
Não. Na verdade o feto precoce nunca foi capaz de consciência. Alguém que pode voltar do coma persistente ainda tem as capacidades mentais, que estão apenas suspensas num dado momento, enquanto o feto precoce não é ainda capaz disto, não tem esta potencialidade ou tem só o que no passado se chamava de potencialidade passiva.
Algumas pessoas sugerem que se seres humanos sem vida cerebral estão clínica e legalmente mortos, tanto é que nós doamos órgãos de pessoas assim para outras, tirando-lhes, porém, a vida biológica que está presente - se um ser humano é uma vida humana meramente biológica, nós matamos os doadores que estão cerebralmente mortos, mas ainda estão vivos, com o coração batendo, outros órgãos funcionando etc.-, então tirar a vida biológica de fetos precoces não deveria ser o equivalente de matar alguém.

“É errado matar um feto humano”¿
Vamos, porém, admitir a plausibilidade da segunda premissa: vamos supor que seja verdade que o feto seja um ser humano inocente no sentido da primeira premissa. Será que temos de endossar a conclusão, de que é errado matar um feto humano¿ Por um lado parece que sim, é só uma questão de lógica. Por outro lado, como este é um raciocínio sobre parte dos fatos e princípios (valores) envolvidos no tema do aborto, não é difícil sustentar que a conclusão não se aplica ao término da gestação solicitada e autorizada pela mãe, mas sim, às ações que tiram a vida de um feto contra a vontade da mãe.
Num conflito de interesses entre mãe e feto durante a gestação, não seria errado, assim pode ser expresso o raciocínio, que a mãe disponha prioritariamente do seu corpo e não seja obrigada a manter uma gestação indesejada, por exemplo, por causa dos ônus que a gestação envolve e por causa do princípio de respeito pela privacidade do próprio corpo. O erro de assassinar um ser humano inocente permanece erro, o feto como um ser humano inocente também permanece um fato, mas uma mulher, na relação biológica especial da gestação, não assassinaria alguém ao interromper ou impedir o uso do seu corpo. (cf. Thomson 1971)
Neste caso não há senão o fim prematuro da gestação, e, em nome do respeito à liberdade da mulher, isso, por mais que seja lamentável, não seria deveria ser moral e legalmente condenável. É preciso lembrar que métodos anticoncepcionais às vezes falham, que as mulheres às vezes são forçadas por companheiros ou por estranhos ao ato sexual, e mesmo que não seja o caso, as circunstâncias sociais e econômicas podem mudar abruptamente, as mulheres gestantes podem ser muito novas, pobres e fracas para querer uma gestação num dado momento de suas vidas, mas não em outro.
Além disso, proibir o aborto tem sido uma das formas usadas pelos homens para controlar o corpo das mulheres, já que isso historicamente torna os homens mais poderosos. Por exemplo, eles não tem o ônus da gestação, e em geral é mais difícil fazê-los assumir o ônus da criação, como a mãe o assume. Mulheres abandonadas e sem o direito de abortar engrossam o número das mulheres muito pobres do planeta. Tudo isso novamente sugere vermos o aborto precoce com olhos mais tolerantes.
Também podem ocorrer problemas graves de saúde com a mãe ou problemas psicológicos relevantes. Mesmo sem tais problemas mais graves, a gestação envolve sempre o uso do corpo da mulher, desconfortos e dores no parto e na recuperação do parto, pode ser sempre psicologicamente difícil – especialmente se a mulher não quer a gestação-, pode interferir com os planos de vida e com o estilo de vida da mulher. (ver DeGrazia, 2005) Também podem existir ou ocorrer problemas graves de saúde com o feto em gestação, e a mãe pode, se puder abortá-lo precocemente, tentar outra gestação, para que o futuro filho não tenha aqueles problemas. É o caso, por exemplo, de doenças incompatíveis com a vida, como a anencefalia.

O problema do feto com anencefalia
Um feto ou um recém-nascido anencéfalo carece do chamado cérebro superior (higher brain), os hemisférios cerebrais onde se forma o córtex cerebral. Esta é a parte do cérebro responsável por nossas capacidades cognitivas e emocionais propriamente ditas: sem elas não temos nem sensciência, nem consciência, nem autoconsciência. A anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina.
Mesmo se houver um período breve em que um bebê humano com anencefalia viver, será uma vida sem a experiência mental ou psicológica conhecida. E, ao contrário de um feto saudável, eles não têm nem a mera potencialidade de desenvolver estas capacidades em qualquer período de seu desenvolvimento futuro. (cf. McMahan 2002: 450-455; Ford 2002: 156-157; 166-167)
No entanto, mesmo não possuindo os hemisférios cerebrais, fetos anencéfalos ainda possuem o tronco cerebral (lower brain), aquela parte do sistema nervoso que controla funções vegetativas, o que faz com que, em certos casos, e por breve período de tempo, eles possuam alguma capacidade de sustentação da vida meramente biológica. Eles são seres humanos (geneticamente humanos) e estão vivos (biologicamente).
A maioria dos fetos com esta anomalia morre, porém, durante a gestação, e dos que chegam a nascer, a maioria morre nas primeiras horas. Uma percentagem pequena sobreviverá meses, mas não se conhece nenhum caso de sobrevivência, sendo considerada uma doença totalmente mortal. (cf. Kluge 2001)
Quando a anencefalia é diagnosticada durante a gestação, algumas mulheres querem o término da gestação; outras escolhem ter o filho. Mesmo dentre as pessoas que pensam que o aborto é errado, várias têm duvidas se é errado interromper a gestação neste caso. E entre as que acham que o aborto é um direito da mulher, muitas reforçarão que neste caso falta totalmente qualquer benefício para o feto, ou para uma pessoa futura que dele viesse.
Alguns pais podem pensar que manter a gestação com tal anomalia é um desrespeito não só a eles, mas também ao bebê. Outros pais podem discordar e querer manter a todo custo a gestação. Países que ainda proíbem legalmente o aborto são, em geral, tolerantes com a interrupção da gestação neste tipo de anomalia, e é importante lembrar que em muitos lugares, quando as leis contra o aborto foram determinadas, não havia a tecnologia atual para diagnosticar este tipo de problema fetal.
            Assim, se o aborto fosse errado, neste caso em especial faltariam provavelmente as principais razões que justificam condená-lo fortemente, e proibi-lo por lei. Bastaria, aliás, aceitar o diagnóstico de que esta é uma gestação de risco para a mulher, e que o melhor prognóstico médico, do ponto de vista da saúde, física e psíquica, da mulher, é o fim da gestação.
Os pais, e em especial a mãe, tem na gestação de um filho um dos momentos mais especiais de suas vidas: se uma tragédia como a anencefalia ocorre, obrigá-los a manter a gestação até o fim, é similar a crueldade e tortura. Terminar antecipadamente tal gestação nunca deveria ser proibido nestes casos. (cf. Diniz & Ribeiro 2003)

Se o aborto for errado, deve ser um crime¿
Vamos por último, aceitar as premissas e a conclusão: é errado abortar um feto humano. Ainda assim podemos recusar a criminalização do aborto e a imposição estatal da gestação às mulheres que não desejam mantê-la. Isso seria causar um mal maior, ou usar um remédio desproporcional, para o erro de terminar a gestação. Mesmo que seja moralmente errado abortar, este erro, dada a relação biológica especial da gestação, todo o seu ônus, e a vontade da mulher, não deveria ser criminalizado e tratado como questão de polícia e condenação prisional.
Há por exemplo, as conseqüências sociais nocivas da proibição – em termos de aborto clandestino, morte ou seqüelas severas para as mulheres mais pobres, efeitos sobre a situação social da mulher -, e a provável incoerência entre o meio (a criminalização) e o fim (evitar abortos) - é plausível supor que muitas mulheres não deixarão de praticar aborto clandestinamente apenas por causa da lei, e que outras tantas deixarão de abortar se tiverem a garantia de que poderão fazer isso num certo período.
 As leis devem ser razoáveis não só quanto aos aspectos morais envolvidos, mas também quanto ao seu custo-benefício, eficiência em atingir seus fins, conseqüências sociais dissipadas, e coerência com outras leis e normas. Na maioria dos países democráticos e desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Japão, e mesmo na França, Itália e Portugal, que são países com forte tradição religiosa católica, por exemplo, as mulheres têm o direito de interromper a gestação, ao menos nos primeiros meses da gestação (aborto precoce).
Este poderia muito bem ser o caso do Brasil. Atualmente a legislação exime de punição apenas o aborto terapêutico (feito quando a mãe corre risco de morte) e o aborto em caso de estupro. Seguindo o caso dos países citados, o aborto poderia ser aceito nos primeiros meses da gestação (até 20 semanas, por exemplo), se houver o pedido esclarecido da mulher, e, após este período, se existirem razões importantes ligadas à saúde da mãe ou do bebê.
Essa pode ser vista como uma solução de compromisso entre os que são totalmente contra o aborto, desde a concepção, e levantam a bandeira pró-vida, e os que são totalmente a favor, em qualquer período da gestação, e defendem a bandeira pró-escolha: um meio termo entre a concepção e o nascimento, e que é, por causa da recente compreensão científica da vida fetal, exatamente o meio da gestação.

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Você sabia que:
No Brasil há uma discussão judicial no Supremo Tribunal Federal (STF, que atua entre outras funções como corte constitucional suprema), sobre a licitude da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia. Desde 2004, quando um sindicato nacional de trabalhadores da saúde defendeu no Tribunal que uma interpretação conforme a Constituição fundamenta e apóia o direito da mãe antecipar o parto no caso de anencefalia do feto, caso assim o deseje, aguarda-se a manifestação final da corte sobre o mérito jurídico do apelo. (cf. Supremo Tribunal Federal, Argüição de Descumprimento Preceito Constitucional nº 54)
O problema que tal discussão judicial enfrenta é que, sob certa interpretação do Código Penal no Brasil (estabelecido na década de 40, e que penaliza o aborto exceto nos casos de risco de morte da mãe e de gravidez resultante de estupro), a antecipação terapêutica do parto ou interrupção terapêutica da gestação de um feto anencéfalo seria crime de aborto, ainda que a interrupção da gestação seja sugerida pelo médico como a terapêutica indicada para os casos de gravidez de anencéfalo.  (Bonella 2007)

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 Bibliografia:
BLACKBURN, S. 2001. Being Good, Oxford, Oxford University Press.
BONELLA, A. E. 2003. “Notas sobre como tomar decisões racionais em ética”. In: DI NAPOLI, Ricardo Bins et alli. (Org.). Ética e Justiça. 1 ed. Santa Maria, v. 1.
______. 2007.  “Anencefalia e o valor da vida humana”. In: Anais do V Simpósio Internacional Principia. Florianópolis : NEL/UFSC,  v. 9.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 54. (Disponível em www.stf.gov.br. Acessado em 05 de agosto de 2007)
DeGRAZIA, D. 2005. Human Identity and Bioethics. Cambridge, Cambridge University Press.
DINIZ, D.  & RIBEIRO, D. C. Aborto por anomalia Fetal. Brasília, Letras Livres, 2003.
FORD, N. 2002. “The pregnant woman and her fetus”. In: The Prenatal Person. Oxford, Blackwell.
GLOVER, V. & FISK, N. 1999. “Fetal Pain: Implications for Research and Practice”. British Journal of Obstetrics and Gynaecology, 106: 881-886.
KLUGE, E. 2001. “Severely disabled newborns”. In: KUSHE, H. & SINGER, P. (ed) A Companion to Bioethics. Oxford, Blackwell.
KOREIN, J. 1997. “Ontogenesis of the Brain in the Human Organism: Definitions of Life and Death in the Human Being and Person”. Advances in Bioethics 2: 25-26
MARQUIS, D. 1989.  “Why abortion is Immoral¿” Journal of Philosophy 86: 183-203.
McMAHAN, J. 2002. The Ethics of Killing. Oxford, Oxford University Press. (Há uma tradução portuguesa pela editora Artmed).
SINGER, P. 2002. Ética Prática. São Paulo, Martins Fontes.
THOMSON, J. 1971. “A Defense of Abortion”. Philosophy and Public Affairs. I: 47-66.


[1] Professor de Ética da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). email: abonella@gmail.com

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