sexta-feira, 30 de maio de 2014

Deus e o problema do mal no universo




 O problema mais impressionante para a crença em Deus é o chamado problema do mal. Trata-se do problema da incompatibilidade entre a existência de males e sofrimento abundantes e gratuitos, e a existência de um Deus todo poderoso e sumamente bondoso. A grande quantidade, e elevada magnitude, de sofrimento e danos naturais (tsunamis, terremotos, fomes endêmicas, etc.) ou sociais (genocídios, guerras, crimes hediondos etc.) aparentemente gratuitos, de que são vítimas seres humanos, especialmente crianças e idosos, além de outras criaturas senscientes, como os animais não humanos, parece ser incompatível com a crença em um Deus de amor.


           O chamado argumento a partir do mal é mais ou menos assim: Premissa 1) Se houvesse um Deus onipotente e sumamente bondoso, então não haveria males e sofrimentos como os citados acima. Premissa 2) Ora, há tais males. Conclusão: Logo, não há um Deus onipotente e sumamente bondoso. Como em todo argumento válido, a verdade das premissas implicará na verdade da conclusão. Assim, para a conclusão ser falsa, a premissa 1 ou a 2 (ou ambas) tem de ser falsa. Por exemplo, pode ser que não seja o caso que existir um Deus bondoso implique que não haja o mal no universo (e a premissa é seja falsa). Ou pode ser que não exista o mal (e a premissa 2 seja falsa).

           Uma primeira tentativa é recusar a premissa 2. Negar que haja o mal horrendo, ou um que seja abundante e gratuito. Normalmente filósofos e teólogos admitem a realidade do mal, e não questionam esta premissa. Seria contra intuitivo negar que a morte de 1 milhão e meio de crianças judias em campos de concentração nazistas, ou a morte de duzentas mil pessoas, sem contar animais, num tsunami no sudoeste da Ásia, ou o sofrimento e agonia de bilhões de animais até hoje desde seu aparecimento, não sejam males horrendos e males sem sentido. Assim, em geral se tenta encontrar alguma forma de compatibilizar a existência de um Deus onipotente e bondoso, com a existência dos males horrendos no universo. 




Mas esta segunda tentativa, de recusar a premissa 1, não tem muito que a recomende racionalmente. Suponha que há um orfanato. Neste orfanato falta de tudo e as crianças passam necessidades. Mas há uma porta fechada na qual está inscrito Diretor. As crianças e os funcionários nunca viram o diretor, nem abriram a porta, que está trancada. Mas mesmo assim, acreditam que ele existe, tem tudo sob controle, conhece a situação do orfanato, e é uma pessoa muito bondosa. Mas se ele existe, é bom, e pode solucionar os problemas do orfanato, por que não o faz? Parece mais sensato duvidar que ele realmente exista. Assim também, diante do mal horrendo, parece mais sensato duvidar que um Deus onipotente e bondoso exista.



Pense nesta forma invertida de explicar o argumento, que chamarei de argumento do bem contra a existência de um Deus malévolo. Se existe um Deus malévolo, então por que existe o bem? Não será o bem ao menos um indício forte de que um tal ser assim não existe? Em geral pensamos que Deus é bom exatamente porque há tanta coisa boa no universo. Mas se você pensa assim, você tem de também pensar que os males e sofrimentos abundantes e desnecessários são um indício forte de que não existe um Deus onipotente e bondoso. O argumento do mal é o mais difícil problema para quem crê em Deus, e para quem pondera se deve ou não acreditar. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Ceticismo ético: Os problemas da Equivalência Moral e do Progresso Moral

4. Equivalência Moral.

Equivalência Morar significa que toda e qualquer concepção moral é tão certa ou tão errada quanto qualquer outra. Isso soa democrático, é  da moda (é algo contemporâneo) e é normalmente aceita em vários círculos, especialmente universitários, mas como algo teórico, abstrato, quase nunca diante de exemplos concretos, sejam mais dramáticos (concepções morais nazistas versus liberais, concepções discriminatórias e opressivas versus benevolentes), sejam menos dramáticos, quando sustentamos uma posição moral em primeira pessoa. 

Ora, o niilismo, o subjetivismo e o relativismo social acarretam a equivalência moral. Se rejeitamos a equivalência moral, então temos razões para rejeitar estas filosofias, e adotar o objetivismo. Por que?
Porque se o niilismo (a interpretação de que nada é certo ou errado moralmente) fosse verdadeiro, a ideia comum que em geral aceitamos. de que se alguma ação é correta, então sua negação tem de ser errada, teria de ser abandonada. Se o nazista diz que exterminar judeus é justo, então o que o liberal diz, que o extermínio não é justo, teria necessariamente de ser errado, e vice-versa. Se eu digo que meninos e meninas devem ser tratados com igualdade, então quem diz que não devem, devem estar errados. Mas se o niilismo é aceito não podemos pensar nestes termos. Isso não significa que o niilismo é falso, ele pode afinal ser verdadeiro, mas não temos muitas razões ou argumentos fortes em seu favor, e temos vários em favor de outras interpretações, como a subjetivista, a relativista social e a objetivista.

A equivalência moral implica que, havendo várias perspectivas morais, todas tem o mesmo valor. Todas são corretas (ou falsas). Mas isso não procede, pois do fato de que há várias perspectivas morais, não se segue necessariamente isso, pois algumas podem ser melhores do que outras (normativamente falando), mesmo sendo apenas uma perspectiva dentre outras (empiricamente falando). Do fato de que toda reivindicação moral é expressa em uma perspectiva particular não se segue que toda a moralidade é puramente convencional (e possuem, todas as moralidades, igual valor).

Veja o exemplo das ciências e da matemática: quando se discorda em uma delas, havendo mais de uma perspectiva sobre a verdade científica (que a Terra gira em torno do Sol X que o Sol gira em torno da Terra, por exemplo), não implica ou acarreta que todas as posições são verdadeiras, são adequadas, ou dependem da opinião dos que acham isso ou aquilo, ou, da opinião da sociedade.

A equivalência moral se apoia no argumento da Liberdade de Consciência e de Expressão: (1) todos nós temos igual direito de expressar nossas opiniões morais; (2) esse direito de igual opinião e expressão dá a nossas opiniões o mesmo valor moral; (3) logo, a opinião de cada um está correta e é moralmente equivalente à dos outros. Mas a segunda premissa é falsa! Seja em matemática, biologia, engenharia de automóveis, ou ética, este passo não se segue da primeira premissa. Eu posso ter direito e direito igual de ter uma opinião sobre o motor de meu carro, mas daí não se segue que minha opinião seja necessariamente equivalente, em sua adequação ou correção, à de meu mecânico, que também é engenheiro de motores. O mesmo.

"Embora meu direito de ter uma opinião sobre a natureza de uma galaxia distante, ou sobre a estrutura celular de uma romã, seja tão justo e válido como o direito de qualquer outra pessoa, ele não significa que minha opinião sobre estas matérias é tão justa e plausível como, digamos, de um astrônoma e de um botânico".

O mesmo para a ética, pensa ao menos Shafer-Landau (e eu). 


5. Progresso Moral, Comparação Moral.

Ocorre progresso quando indivíduos ou sociedades vem a ser melhores moralmente. Por exemplo, quando criminosos se recuperam, ou quando a escravidão é abolida. Pode haver também regressão moral, quando indivíduos endurecem seus corações e se tornam mais violentos e exploradores dos outros.
[Um exemplo de progresso moral é a consciência de que os casais gays tem os mesmos direitos, e a prática de garantir-lhes igualdade jurídica, casamento civil e adoção de crianças, como o Brasil tem recentemente garantido a eles, através de várias decisões da Suprema Corte, baseadas as decisões na Constituição, que fala de igualdade, não-discriminação e dignidade da pessoa humana. Você concorda? Mas um exemplo de regressão moral é o que ocorre nos Estados Unidos, quando o dono de uma rede de lanches manifesta repulsa pela igualdade para os gays e sofre então, no dia seguinte, a crítica severa de grupos defensores da igualdade: mas o que ocorre então? Filas imensas para comprar lanches na rede do cara, aumentando enormemente os lucros deste, por parte de pessoas que se identificaram com a opinião discriminatória, majoritária naquele lugar. Regressão moral!]

"As sociedades são capazes de progresso moral. A maioria das sociedades que costumava tolerar a escravidão não o faze mais. Muitas sociedades que já proibiram as meninas de estudar agora lhes dão educação como aos meninos. Nós hoje frequentemente tratamos as pessoas com deficiências mentais e necessidades especiais muito melhor do que já fizemos no passado. Certamente em tudo isso ainda há muita imperfeição, mas comparado com onde estávamos cem anos atrás, estamos meio aos trancos e barrancos um pouco à frente do que estávamos". (p. 22)

Mas para dar sustentação a essa interpretação, parece que temos de pressupor um padrão de avaliação para a comparação do período A com o período B, um que seja independente do padrão vigente ou do padrão passado, sejam eles preferidos individualmente ou consentidos socialmente, não importa, tem de ser um tipo de padrão objetivo.

Mas se isso é verdade, o ceticismo ético, em sua concepção de equivalência moral, não pode integrar esta noção popular ou comum de progresso ou regresso moral: o ceticismo implica que nunca há um padrão objetivo, e a equivalência impedira a comparação, logo, a avaliação comparativa.

Porém, pode haver uma concepção cética de progresso, ainda que de tipo mais restrito: seja pelo abandono de crenças falsas (que podem ser todas as crenças morais, se somos teóricos do erro ou niilistas), seja pelo alcance ou não dos objetivos almejados pelas pessoas individualmente, se somos subjetivistas, ou das culturas, se somos relativistas sociais, seja pela maior coerência entre as crenças vigentes. 

O problema é que a primeira interpretação, niilistas, pressupõe o que deveria demonstrar, ao supor que não há nenhuma verdade moral objetiva, e as outras duas interpretações são bem restritas pois não colocam em questão os próprios costumes e concepções fundamentais das pessoas ou culturas: pode ser que os objetivos centrais sejam eles próprios imorais.

Niilistas são como ateístas, se deus - ou a moral objetiva - não existem, então não é possível nem estar mais próximo deles (de deus ou da verdade moral), e então, nem progredir moralmente no sentido apropriado, ou regredir.

Subjetivistas e Relativistas enfrentam problemas parecidos: o passado é julgado pior ou melhor do que o presente, sempre com um deles decidindo isso, ou pela preferência individual, ou pela vigência social ou acordo social, o que é injusto, pois um dos competidores julga o outro, enquanto o precisaria haver, para progresso ou regresso moral, seria um juiz imparcial.

Um juiz imparcial seria um padrão independente das preferências, individuais ou culturais, e isso é exatamente o que a interpretação objetivista propicia.
* * * * * *
1 - Como a concepção sobre o erro moral se relaciona com os problemas da equivalência moral e do dogmatismo, segundo Shafer-Landau? 
2 - Como poderíamos defender a posição cética e atacar a posição objetivista mantendo tudo o mais como está, nos exemplos e supostas implicações de cada concepção, segundo o autor?
3 - Explique a concepção de erro e de progresso moral para o subjetivista e para o relativista social.

Ceticismo ético e erro moral

Contra o ceticismo ético: a infabilidade moral.

Muitas vezes confundimos a moralidade convencional, que tem afinidades com o direito (conjunto de leis de um certo país), com a moralidade objetiva (os padrões morais do certo e do errado), porém, faz todo sentido pensarmos que a moralidade convencional pode se enganar porque as visões morais dos indivíduos e sociedades podem estar erradas. Suponha o caso da escravidão ou da discriminação das mulheres.
 
Há ao menos duas interpretações para o erro ao endossar coisas tão feias, digo, tão ruins: a teoria do erro (Mackie), para quem toda visão moral está sempre errada, apesar de ter a intenção de representar o que seria certo objetivamente, e a teoria objetivista (do Shafer-Landau mesmo, por exemplo), para quem há um padrão ou normas do que é certo e errado que é independente das crenças vigentes, e que serve, por isso mesmo, para julgarmos o nosso possível erro, ou o possível erro de quem quer que seja.


"De acordo com a teoria do erro, cada elemento da moralidade convencional está equivocado. Assim,      
as visões básicas do escravocrata e do misógino são FALSAS. Muito bom!    
Mas do mesmo modo são FALSAS as visões morais do santo, do que defende a liberdade e do benfeitor 
anônimo. Nada bom!"

Dá para entender qual o problema de um meio termo, que diga que há um padrão do certo e do errado que realmente funciona ou é adequado, reecusando então a teoria do erro: no subjetivismo, a escravidão até pode ser errada, mas para isso a pessoa que julga tem de aceitar isso, se ela acha diferente, ela deixa de ser errada. O mesmo com o relativismo social: as posições morais não são todas equivocadas, como diz a teoria do erro, mas para que o certo ou o errado exista, as sociedades tem de produzir normas sociais e uma delas é a proibição da escravidão. Aqui o problema: os escravocratas em sua imensa maioria para não dizer todos, serão indivíduos ou formarão uma sociedade em que a escravidão é um bem e não um mau, certa e não errada, mas é um tanto óbvio que se há algo que seja ruim e errado moralmente, ao menos para nossa consciência e cultura atual, é a escravidão de outros seres humanos. Deve haver algo de errado com estas teorias todas, e Shafer-Landau sugere que o erro é descartarem rapidamente a interpretação objetivista. 

"Quando nós reivindicamos, por exemplo, que aqueles que rebaixam as mulheres a cidadãs de segunda 
classe estão agindo erradamente, não queremos dizer que aqueles que favorecem a igualdade também 
estão agindo mal. Pelo contrário. Nossas suposição básica é que equívocos morais podem e devem 
ser corrigidos". (p. 16)

Vejam os dois tipos de críticas que uma moralidade convencional está sujeita:
A crítica interna, que se baseia nos fundamentos da moral convencional em questão, e detecta alguma inconsistência ou dissonância entre os valores internamente presentes, e a externa, que questiona também as suposições fundamentais de uma cultura
 
Shafer-Landau sugere que só o Objetivismo pode interpretar adequadamente a crítica externa e dar-lhe o devido suporte, mas não o Ceticismo.
 
Por que? Porque se rejeitamos o Objetivismo, então nossas visões morais estarão sempre certas, sejam quais foram. Se a moralidade convencional é tudo que há, então um nazista consistente (como aquele que aceita tranquilamente ir para a câmara de gás quando descobre que sua família de fato é judia - você já encontrou um assim?) ou um terrorista racional (que aceita que sua causa seja destruída se lhe provam que ela está contra os objetivos dela mesma - você também encontra muito desta espécie por aí?) serão virtuosos, sem falha moral. O Subjetivismo e o Relativismo Social, que vêem a moral como empreendimento puramente convencional, acarretam um tipo de INFABILIDADE MORAL dos indivíduos ou sociedades. Mas isso é bastante arrogante, sem suporte lógico suficiente, e moralmente problemático. O Objetivista tem uma outra estória para contar:

 "O outro diagnóstico do erro moral fundamental é dado pelo objetivista ético. Se mesmo as mais 
  profundas convicções de indivíduos dos indivíduos ou das sociedades podem estar erradas, então, 
  tanto quanto exista qualquer verdade moral, deve existir algum padrão, que seja independente destas 
convicções, e que existem para desafiá-las como erros." (p. 16)

Fontes:

SHAFER-LANDAU, Russ. Whatever Happened to Good and Evil? Oxford, Oxford University Press, 2004.
Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 2002.
        
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1 - Explique as quatro interpretações do erro moral de apoiar a escravidão ou a discriminação das mulheres.
2 - Você vê algum jeito de defender a teoria do erro, o subjetivismo e o relativismo? Como seria?
3 - Você vê algum modo de rejeitar o objetivismo?
4 - Aplique as respostas 2 e 3 aos exemplos dados no texto.
5 - Por que será que o apóstolo Paulo escreveu na Bíblia: "Escravos, sejam submissos aos seus senhores", e "mulheres, sejam submissas a seus maridos"? Ele apoiava a escravidão e a discriminação das mulheres? (Ele também escreveu que no mundo novo do reino de deus, "não há mais escravo nem livre, homem nem mulher", escreveu uma carta pedindo a um senhor que recebesse bem a seu escravo fugitivo, e "não como escravo, mas como um irmão", e foi perseguido pelas autoridades de sua sociedade por lutar contra a discriminação dos "pagãos" - "não há mais gentio ou judeu").

Ética no enfrentamento da CoVID-19

Questões éticas difíceis passaram a nos atingir mais frontalmente com  a pandemia da COVID-19. O  NUBET – Núcleo de Bioética e Ética Pública...