quarta-feira, 27 de março de 2019

Seria a ética subjetiva? Teria a razão um papel? Ela é universal? (PETER SINGER)

Diante do relativismo, o “subjectivismo ético evita [pelo menos] que se tornem absurdos os esforços valorosos dos pretendentes a reformadores, pois faz os juízos éticos dependerem da aprovação ou desaprovação da pessoa que faz esse juízo, e não da sociedade em que essa pessoa se insere. Há outras dificuldades, porém, que pelo menos algumas formas de subjectivismo ético não conseguem superar. [...] Se quem defende que a ética é subjectiva quer com isso dizer que, quando afirmo que a crueldade infligida a animais é um mal, estou na realidade apenas a dizer que condeno a crueldade para com os animais, então enfrenta uma forma agravada de uma das dificuldades do relativismo: a incapacidade de explicar a divergência ética. O que era verdadeiro para o relativista a propósito do desacordo entre pessoas de diferentes sociedades é verdadeiro para o subjectivista a propósito do desacordo entre quaisquer duas pessoas. Eu digo que a crueldade para com os animais é condenável; outra pessoa qualquer diz que não; ambas as proposições podem ser verdadeiras, nada havendo, portanto, para discutir.”

(...) “A questão do papel que a razão pode desempenhar na éticaconstitui o ponto crucial levantado pela afirmação de que a ética é subjectiva. A não existência de um misterioso domínio de factos éticos objectivos não implica a inexistência de raciocínio ético. (...) O que tem de se demonstrar para dar à ética prática fundamentos sólidos é que o raciocínio ético é possível.” (...) [T]emos de conceder que quem segue convicções éticas não convencionais vive, mesmo assim, de acordo com padrões éticos, se pensar, por qualquer motivo, que o que faz é correto. A condição em itálico dá-nos uma pista para a resposta que procuramos. (...) A noção de viver de acordo com padrões éticos está ligada à noção da defesa da forma como se vive, de dar uma razão para tal, de a justificar. Se aceitarmos que uma determinada pessoa vive de acordo com padrões éticos, a justificação deve ser de determinado tipo. Uma justificação exclusivamente em termos de interesse pessoal, por exemplo, não serve. É necessário mostrar que as acções motivadas pelo interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos de base mais ampla para serem defensáveis, porque a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual.

(...) “Desde a antiguidade que os filósofos e os moralistas têm expressado a ideia de que o comportamento ético é aceitável de um ponto de vista que é, de alguma forma, universal.A "regra te ouro" atribuída a Moisés, que se encontra no livro do Levítico e foi subsequentemente repetida por Jesus, diz que devemos ir para além do nosso interesse pessoal e "amar o nosso semelhante como a nós mesmos" ou, por outras palavras, atribuir aos interesses alheios a mesma importância que damos aos nossos. A ideia de nos pormos no lugar dos outros está associada à outra formulação cristã do mandamento, segundo a qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que eles nos fizessem. Os Estóicos defendiam que a ética decorre de uma lei natural universal. Kant desenvolveu esta ideia na sua famosa fórmula: "Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer que se tornem leis universais." A teoria de Kant, por sua vez, foi modificada e desenvolvida por R. M. Hare, que vê a universalizabilidade como uma característica lógica dos juízos morais. Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século XVIII, apelaram para um "espectador imparcial" imaginário como pedra-de-toque do juízo moral; a sua versão moderna é a teoria do observador ideal.” [Mais: utilitaristas, de Jeremy Bentham a J. J. Smart; John Rawls, um importante crítico contemporâneo do utilitarismo; Jean-Paul Sartre e Jürgen Habermas: todos endossam o aspecto universal da ética.]. 
(* de SINGER, Peter. “Sobre a ética”. Ética Prática. Lisboa, Gradiva, 2000, com algumas modificações minhas)

quarta-feira, 20 de março de 2019

A ética é relativa à sociedade? A resposta e justificação de Peter Singer, abaixo

A ética não é relativa à sociedade(Peter Singer*)

“A quarta e última afirmação sobre a ética que refutarei neste capítulo de abertura é a de que a ética é relativa ou subjetiva. Pelo menos refutarei estas afirmações em alguns dos sentidos em que são frequentemente tomadas. (...)

A forma mais fundamental de relativismo tornou-se popular no século XIX, quando começaram a surgir dados referentes às crenças morais de sociedades distantes. Para o puritanismo severo da época vitoriana, a notícia de que havia lugares onde as relações sexuais entre pessoas não casadas eram encaradas como perfeitamente normais trouxe a semente de uma revolução das atitudes sexuais. Não admira que para algumas pessoas essa informação sugerisse não apenas que o código moral da Europa do século XIX não era objetivamente válido, mas também que nenhum juízo moral pode fazer mais do que refletir os costumes da sociedade que o gera. Os marxistas adaptaram esta forma de relativismo às suas teorias. As ideias dominantes de cada período, afirmavam, são as ideias da sua classe dominante e, portanto, a moral de uma sociedade é relativa à sua classe economicamente dominante e, por esse motivo, indiretamente relativa à sua base económica. Daí que refutassem triunfalmente as pretensões de objetividade e validade universal das morais feudal e burguesa. Mas isto levanta um problema: se a moral é relativa, o que há de especial no comunismo? Por que razão haveria alguém de tomar o partido do proletariado, e não o da burguesia?

Engels abordou este problema da única forma possível: abandonando o relativismo em favor de uma tese mais restrita que defendia que a moral de uma sociedade dividida em classes será sempre relativa à classe dominante, embora a moral de uma sociedade sem antagonismos sociais pudesse ser "realmente humana". Aqui já não há relativismo, mas é ainda o marxismo que, de uma forma meio confusa, impulsiona muitas ideias relativistas vagas.

O problema que levou Engels a abandonar o relativismo também refuta o relativismo ético comum. Quem quer que tenha passado por uma decisão ética difícil sabe que, se lhe disserem o que a sociedade pensa que ele deve fazer, isso não resolve a dificuldade. Temos de tomar as nossas próprias decisões. As crenças e os costumes no seio dos quais fomos criados podem exercer grande influência sobre nós, mas, assim que começamos a refletir sobre eles, tanto podemos optar por agir de acordo com essas crenças e esses costumes como contra eles.

A perspectiva oposta -- a de que a ética é sempre relativa a uma determinada sociedade -- tem consequências muito improváveis. Se a nossa sociedade condena a escravatura enquanto uma outra a aceita, não temos bases para escolher entre ambas as perspectivas antagónicas. Na realidade, numa análise relativista não existe conflito entre elas. Quando digo que a escravatura é um mal, estou apenas a dizer que a minha sociedade a rejeita; e quando os escravagistas da outra sociedade dizem que a escravatura é um bem, estão apenas a afirmar que a sua sociedade a aprova. Para quê discutir? É óbvio que ambos estaríamos a dizer a verdade.

Pior ainda, o relativista não consegue explicar satisfatoriamente o inconformista. Se "A escravatura é um mal" significa "A minha sociedade rejeita a escravatura", nesse caso qualquer pessoa que viva numa sociedade que a aceita está a cometer um erro factual quando diz que a escravatura é um mal. Uma sondagem poderia então demonstrar o erro de um juízo ético. Os candidatos a reformadores ficam numa posição terrível: quando pretendem modificar as perspectivas éticas dos seus concidadãos, estão necessariamente errados; só quando conseguem conquistar a maioria da sociedade passam as suas opiniões a estar certas. Estas dificuldades são suficientes para afundar o relativismo ético (...)

(*SINGER, Peter. “Sobre a ética”. Ética Prática. Lisboa, Gradiva, 2000)

ROTEIRO ALGUMAS QUESTÕES PARA ESTUDO E A APROFUNDAMENTO (CURSO 2019)

QUESTÕES PARA AS AULAS BASEADAS NO LIVRO DE RACHELS, OS ELEMENTOS DA FILOSOFIA MORAL

CAPÍTULO II (O DESAFIO DO RELATIVISMO CULTURAL)
(1)  Qual é “argumento das diferenças culturais” e por que não é sólido?
(2)  Escolha e analise uma das implicações do relativismo, aplicando-a a um dos casos citados no capítulo.
(3)  Qual é o “argumento dos valores em comum”? Como ele poderia ser desafiado por um relativista?
(4)  Por que relutar em criticar outras culturas? O que dá razão a tal atitude?

CAPÍTULO III: (O SUBJETIVISMO NA ÉTICA)
(1)  Quais os problemas do subjetivismo simples? Como o Emotivismo os resolve?
(2)  Como o autor apresenta e defende a possibilidade de fatos e de provas em ética? Você concorda? Justifique. 
(3)  O que há de errado na homossexualidade? O que há de errado no casamento civil para gays? O que suas respostas teriam de impacto na religião? Explique e justifique.

CAPÍTULO I (O QUE É A MORALIDADE?)
(1)  Quais eram suas impressões iniciais sobre os casos relatados no capítulo? O que pensa dos casos agora, depois da leitura e das aulas? Por que?
(2)  Explique um dos princípios morais elencados nestes argumentos sobre os casos, e diga qual fato relevante está ligado a ele. Ele é um bom princípio em geral? E para o caso? Por que? Por que não?
(3)  O que é a moralidade mínima para Rachels? Quais os requisitos do pensamento moral, no texto? Você concorda? Justifique. 

CAPÍTULO IV (DEPENDERÁ A MORALIDADE DA RELIGIÃO?)
(1)  A moralidade depende da religião? Justifique.
(2)  Explique o “argumento de Eutífron” e as duas relações possíveis entre “mandamento divino” e razões morais. (Qual lhe parece mais atraente? Por que?)
(3)  Por que é difícil tratar questões morais particulares (aborto, por ex.), com a religião, segundo o autor? O que você pens disto?

CAPÍTULO V (EGOÍSMO)
(1)  Temos responsabilidades morais com quem está morrendo de fome? Por que?
(2)  Qual o problema com a ética, se o Egoísmo Psicológico for verdadeiro? Quais os problemas do Egoísmo Psicológico?
(3)  Exponha e analise um argumento a favor e um argumento contra o Egoísmo Ético, e relacione suas respostas à questão 1 com esta.

CAPÍTULO VI (CONTRATUALISMO):
(1)  Explique o dilema do prisioneiro e o relacione moralidade comum e teoria do contratualismo.
(2)  Qual é o argumento contratualista em favor da obediência eda desobediência às leis? 
(3)  Como um contratualista poderia responder à crítica de que exclui os animais e os bebês do escopo da moralidade?

CAPÍTULO VII (A ABORDAGEM UTILITARISTA) 
(1)  O que você pensa da solução utilitarista para os problemas da eutanásia, das drogas e dos animais?
(2)  Como em geral a tradição cristã tratou a eutanásia? Qual o argumento de Bentham para a compatibilidade entre o cristianismo e o utilitarismo? O que uma resposta tem a ver com a outra?
(3)  Como se pode contestar ou problematizar o argumento em proldos animais em geral e/ou dentro do Utilitarismo?

CAPÍTULO VIII (O DEBATE SOBRE O UTILITARISMO)
(1)  Quais os problemas do utilitarismo com a justiça e os direitos individuais? 
(2)  O utilitarismo exige de mais ou exige de menos? Explique.
(3)  Quais as respostas ou defesas, disponíveis aos utilitaristas, contra seus críticos?

CAPÍTULO IX (HAVERÁ REGRAS MORAIS ABSOLUTAS?)
(1)  O que estaria errado na decisão de Truman? E na avaliação de Anscombe, o que você vê como estranho?
(2)  Por que um dever categórico seria algo “misterioso”, e qual a explicação de Kant para resolver tal mistério? Qual será a opinião de Rachels? Explique.
(3)  Como se pode contestar ou desafiar as premissas do argumento de Kant contra mentir?
(4)  Qual o elemento mais importante da teoria de Kant? Justifique.

CAPÍTULO X (KANT E O RESPEITO PELAS PESSOAS).
(1)  Como Kant explica o valor inerente dos seres humanos? O que universalidade (das regras) tem a ver com dignidade humana (como em si)?
(2)  Comente as posições utilitarista e kantiana sobre a punição. O que implicam para a ideia de pena de morte?

CAPÍTULO XI (FEMINISMO)
(1)  Comente sobre algumas diferenças entre a noção comum do feminismo e os conteúdos do capítulo.
(2)  Homens e mulheres pensam diferentemente? Se sim, o que explicaria tal coisa? Isso é relevante para a ética? Explique.
(3)  Feminismo e defesa de direitos individuais: amigos ou inimigos? Explique.

CAPÍTULO XII (VIRTUDES)
(1)  Como podemos saber o que é certo fazer numa situação particular, seguindo a ética das virtudes? E seguindo a ética de Kant? Explique a diferença?
(2)  Pessoas virtuosas às vezes discordam uma com as outras sobre o que se deve fazer. Isto é um problema para a ética das virtudes? Por que? Por que não?
(3)  É possível às éticas da ação correta, que se baseiam na razão neutra, resolver os desafios “da parcialidade” e da “motivação”, que são as vantagens das éticas das virtudes? Explique e dê sua posição. Justifique sua posição.

CAPÍTULO XIII (COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA)
(1)  “O utilitarismo de estratégias múltiplas é uma teoria moral X (a suposta melhor teoria de tudo, na ética), fruto da combinação das outras teorias, ou de parte delas, com o utilitarismo”. Você concorda? Onde estão as outras teorias ou partes delas no Utilitarismo de estratégias múltiplas? 
(2)  Há algum problema na concepção de Rachels? Que críticas você lhe endereçaria? Que teoria você apostaria que será, no fim das contas, a melhor teoria, das que estudamos? Por que?
(3)  Comente criticamente o curso, o livro de Rachels e a disciplina.



CURSO DE ÉTICA 1 - 2019

Disciplina de Ética 1, Graduação em Filosofia da UFU, dada às quartas à noite e às sextas de manhã. 

O objetivo geral do curso consiste em apresentar e analisar aspectos fundamentais da ética, relacionados aos seus três ramos principais, metaética, ética normativa e ética aplicada. Entre os objetivos específicos estão: incentivar e treinar competências lógicas aplicadas à ética; discutir sobre o relativismo (social e individual) e a racionalidade prática em geral; conhecer e analisar as perspectivas normativas mais utilizadas (como contratualismo, utilitarismo, ética kantiana etc.); analisar algumas questões em ética aplicada (como cotas raciais, aborto, assistência aos pobres, estatuto moral dos outros animais etc.), conectando-as às perspectivas normativas citadas. 

O programa será:

I. A disciplina da ética e alguns de seus aspectos metaéticos
1.1 A teoria do relativismo social e o que não é ética
1.2 O subjetivismo e o aspecto universal da ética
1.3 A teoria do mandamento divino e a questão da homossexualidade
1.4 O raciocínio ético e a questão das cotas
2. Éticas normativas: perspectivas e questões práticas
2.1 Egoísmo ético e a questão do auxílio aos pobres
2.2 Contratualismo e a questão do uso da violência
2.3 Utilitarismo e a questão do sofrimento causado aos animais
2.4 As críticas ao utilitarismo e a questão de tirar a vida dos animais
2.5 Deontologia pluralista e a questão de tirar a vida humana
2.6 Deontologia kantiana e a questão da eutanásia
2.7 Teorias feministas e a questão do aborto
2.8 Teorias da virtude e a crise ambiental
3. Teoria ética ideal e a questão de por que viver eticamente

* BIBLIOGRAFIA
- RACHELS, J. Os Elementos de Filosofia Moral. Porto Alegre, AMGH Editora, 2013.
- SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
- VERÍSSIMO, Luiz. “Homossexualidade e lei”. https://criticanarede.com/homossexualidade.html
- Site de pesquisa: www.criticanarede.com
Complementar:
-SHAFER-LANDAU, R. The Fundamentals of Ethics. Oxford, Oxford University Press, 2018
- Site de pesquisa: www.plato.stanford.edu

Ética no enfrentamento da CoVID-19

Questões éticas difíceis passaram a nos atingir mais frontalmente com  a pandemia da COVID-19. O  NUBET – Núcleo de Bioética e Ética Pública...