quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O núcleo essencial do Cristianismo (Primeira carta de João).



     O núcleo da mensagem cristã, numa interpretação plausível desta tradição religiosa e espiritual, está nesta passagem da primeira carta de João (4, 7-8): 

“Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele     que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor”. 
     
     Um pouco antes já se expressava, na carta, a mesma idéia: 


“Para sabermos se conhecemos a Deus, basta ver se cumprimos os seus mandamentos” (2, 3); “porque amar a Deus significa observar os seus mandamentos”  (5, 3). 

     Na verdade, há só um mandamento e um só pedido: “quem ama seu irmão permanece na luz” (2, 10); “esta é a mensagem que ouviram desde o princípio: que nos amemos uns aos outros”. No Evangelho de João o mandamento novo, e ha um só, é amarmos uns aos outros como Jesus amou, doando a vida em favor da humanidade. 

     (Nos evangelhos sinóticos ainda há dois mandamentos que resumes a Lei de Moisés, amas a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo com a si mesmo; em João, toamando também as Cartas em consideração, há apenas um, e amar a Deus consiste em amar ao próximo desta maneira especial, "como Cristo", que a propósito, é, na tradição cristã predominante, Deus mesmo, "um com o Pai").
     
     E o que é amar? João escreve: 


“Compreendemos o que é o amor, porque Jesus deu sua vida por nós; portanto, nós também devemos dar a vida pelos irmãos. Se alguém possui os bens deste mundo e, vendo seu irmão em necessidade, fecha-lhe o coração, como pode o amor de Deus permanecer nele? Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade". (3, 16-17). 
     
     Em suma, Deus é amor; amar ao próximo como Cristo amou é a forma principal de amar a Deus; amar ao próximo é especialmente repartir do que temos com quem está em necessidade. É uma doutrina simples, e difícil de ser praticada. 

   Hoje em dia, poucos parecem ainda entender e praticar assim o Cristianismo, se tomamos as igrejas constituídas, mesmo (ou pnrcipalmente) as novas igrejas de massa e de telecomunicação. Praticar o amor cristão hoje, levando em conta a Carta de João e, em certo sentido, o Novo Testamento, é como adotar o princípio de promover o maior bem em cada ação individual, o que não é só demasiado exigente, mas talvez até impossível ou incoerente com nossa psicologia comum. (Esta é uma crítica comum à filosofia moral chamada de utilitarista de atos, que adota o princípio da promoção do maior bem para todos os afetados como critério para saber qual ação fazer).
     
     Mesmo sem considerar a ética do maior bem ou mesmo a filosofia moral em geral, também está claro da leitura das cartas de João, e do Evangelho de João também (com o novo mandamento dado por Jesus, amarmos como Ele amou), que um seguidor de Cristo é, ou tenta ser com todas as suas energias, um altruísta, ou seja, alguém que coloca o bem dos outros acima do próprio bem, ou encontra na preocupação em melhorar a vida dos mais necessitados e colaborar para uma sociedade fraterna, uma das coisas mais significativas de sua vida.
     
     O altruísmo por si é uma forma interessante de viver: de respondermos às demandas da prudência (o que nos traz felicidade verdadeira ou duradoura) e da moralidade comum (o que nos torna justos e bons, e dignos de sermos felizes), independentemente da religião que se tenha. Mas é também uma forma interessante de entender a própria religião: religião-com-altruísmo é uma maneira robusta de respondermos às demandas do sentido último da vida, da vivência do mistério da existência do mundo e de nossa interioridade, de estabelecermos relações significativas com os outros, com a natureza e com Deus. Ora, o Cristianismo é a religiosidade do altruísmo, literalmente.
     
     Esta maneira de entende-lo, e o conteúdo da primeira carta de João, é tanto clássica, e nos liga à mais pura tradição da vida cristã primitiva e do Cristianismo ortodoxo (primeiros Concílios), quanto é conteporânea, apropriada à cultura secular e crítica do mundo moderno. 

     Por exemplo, o ecumenismo e o diálogo entre religiões tornam-se bem garantidos e recebem apoio e reforço, assim como o engajamento social e político em favor da justiça. Mas as visões de mundo céticas e atitudes e propostas humanistas e bondosas, de quem quer que seja, também são amistosamente bem vindas. 


     Com o critério do amor bondoso e altruista de Cristo, os cristãos podem detectar nos movimentos da história o que devem apoiar e o que devem reprovar, e as causas como o direito das pessoas gays ou igualdade plena para as mulheres, em geral reprovadas por parte dos cristãos, receberiam aprovação e apoio.

     
     O que fica prejudicado é o egoísmo e suas manifestações, dentre e fora da religião, de agressividade e violência, exclusão, desvalorização dos direitos humanos e do humanismo, ou simples indiferença ao ideal do amor e da fraternidade humanas.
     
     Infelizmente, muitas das comunidades cristãs realmente existentes, em geral, não colocam a prática do amor (agape) no centro de suas experiências e de suas estruturas, nem, estranhamente, de seu discurso teológico. Perde-se mais tempo e energia com outras coisas, digamos, espiritualistas, ou internas a rituais, autoridade, ou com doutrinas exóticas e fantasiosas. (Perde-se tanto tempo com isso e tão pouco ou nada com a prática do amor concreto aos pobres).
     
     Algo prático para encerrar: da semelhança entre Cristianiso e ética (secular) do maior bem, retiro a sugestão, para a prática cristã individual nos dias de hoje, caso tenhamos mais bens ou dinheiro do precisamos para as nossas necessidades, retiro essa sugestão: um cristão pode adotar o altruísmo eficaz, especialmente a proposta de uma cultura regular de doação, de parte da renda, a organizações altamente eficazes em salvar vidas humanas da extrema pobreza e da morte precoce.

     É a proposta do filósofo Peter Singer em https://www.thelifeyoucansave.org), em que nos comprometemos a doar regularmente em torno de 1 a 5% do que ganhamos aos pobres absolutos (há um calculador do percentual conforme a sua renda), ou da comunidade https://www.givingwhatwecan.org, em que nos comprometemos a doar 10%, a instituições sérias e altamente eficazes em salvar vidas ou diminuir agravos à qualidade de vida (doenças infantis, por exemplo), das pessoas mais pobres do mundo. (Sobre o altruísmo eficaz, veja mais em https://altruismoeficaz.com.br).
     
     Não creio que seja possível querer ser cristão sem alguma atitude e compromisso assim ou similar, e sem colocar o altruismo no centro de sua vida. Isso é o núcleo, o mais essencial, da fé e da prática cristãs, talvez de qualquer ética, religiosa ou não. 

Um comentário:

  1. O que divergimos aqui já está exposto no comentário da primeira parte do texto. Amigo disse uma verdade, da qual lamento muito,realmente os que se dizem cristãos não estão comprometidos com aquilo que deveria ser a sua marca, qual seja, a caridade. Temos os instrumentos, um deles investir em alguma causa comunitária, mas eu também colocaria o "preocupar-se com o que está próximo", por exemplo, não são poucas as vezes que nos deparamos com alguém em dificuldade, um amigo que não está conseguindo pagar a faculdade pois está em aperto, outro que está desempregado. E se o rol de amigos é de uma classe mais abastada, em toda cidade existe periferia, cadeias, hospitais; poderíamos começar a visitar os doentes, presos e os menos abastados, oferecendo as vezes apenas compreensão (mas nunca nos esquecendo que esta por si não alimenta o físico).

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