quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Aborto e ética: uma perspectiva liberal

A tese em favor do direito ao aborto diz que d
evemos aceitar, como sociedade, o direito legal ao aborto, ao menos no primeiro trimestre da gestação (o que se pode chamar de aborto precoce), como um direito reprodutivo da mulher que, tendo engravidado, não quer mais continuar com a gestação. Proibir e criminalizar o aborto voluntário precoce, quando a vida fetal está neste estágio inicial e a mulher quer interromper a gesatção, deve ser tido por nós como uma intromissão e restrição injustificáveis na sua privacidade e liberdade.

O principal problema da aceitação disto é que o aborto acarreta a morte do feto - que podemos chamar de ser humano em estágio fetal. Em geral tirar a vida de outro ser humano é um grave erro. Todavia, se pensarmos bem, no caso do aborto há este conflito entre manter a vida humana intrauterina e resguardar a privacidade da mulher sobre o próprio corpo e seu papel na reprodução: quem é a favor do direito ao aborto, e eu sou, pensa que faz sentido que neste caso prevaleça, ao menos na esfera dos direitos legais, o valor de respeitar a privacidade e liberdade de uma mulher, contra o valor da vida. 

Os fatos principais que justificam isso são:  (1) que o ser humano em estágio fetal está dentro do organismo da mulher e ela não quer levar adiante a gestação, neste ponto; (2) que este ser humano, no primeiro trimestre, ainda tem uma vida predominantemente, senão totalmente, vegetativa, não possuindo ainda nem capacidade para consciência nem vivência de experiências subjetivas. (Mais tarde na gestação, mais ou menos depois de 20 semanas de gestação, para a ciência atual, o feto adquirirá a capacidade para consciência e experiências subjetivas, desenvolvendo mais do que uma vida meramente biológica; passará a ser um sujeito de experiências ou um ser humano consciente, ainda que provavelmente não será ainda consciente de si).

Estes fatos são as razões que justificam dar peso maior à autonomia reprodutiva da mulher, em sua vontade de interromper ou não a gestação, e, inevitavelmente, um peso menor à vida intra-uterina do feto. Se o feto estivesse fora do organismo da mulher, seria menos relevante que estivesse em estado predominantemente ou totalmente vegetativo; se o feto fosse capaz de consciência e fosse sensciente, seria menos relevante que estivesse dentro da mulher. Mas, no caso do aborto precoce, os dois fatos vem juntos, e isso é relevante.

Pelo que parece, estes ingredientes juntos não estão presentes em outras situações em que pensamos que é errado que se tire a vida de outro ser humano. Qual é o caso semelhante que contenha os dois ingredientes? Uma pessoa em estado vegetativo num hospital? Mas ela possui a capacidade para a consciência e já foi sensciente, enquanto o feto nunca o foi e, neste período, não pode sê-lo; além disso está fora do organismo da mulher. 

Mas e se o paciente no hospital também nunca esteve em estado consciente ou não tem tal capacidade, poderemos tirar-lhe a vida? Supondo que não, novamente, ele não está dentro do organismo da mulher, há alternativas para resguardar a privacidade da pessoa que não queira a vida deste ser humano sem tirar-lhe a vida. Supondo porém que não seja errado encerrar a vida de um ser humano que sempre esteve em estado vegetativo, então não deveria ser visto como errado tirar a vida num aborto precoce, em que tal ser humano está dentro da mulher. 

Em que outra situação podemos pensar que não seria justificado dar maior peso à liberdade e privacidade sobre si mesmo, se isso tira a vida de um outro ser humano, exceto no caso real do aborto e em casos imaginários em que um outro organismo, não sensciente, se encontra conectado a outro deste modo íntimo? Em qual situação há um conflito em que, ou se resguarda a privacidade, ou se mantém a vida de um outro ser humano em estado vegetativo, e não há a alternativa de resguardar as duas coisas? 

O desafio filosófico e prático posto aqui é: se houver tal caso, eu, que defendo o direito ao aborto, devo mudar de idéia; se não houver, quem é contra é que deve mudar de posição, ao menos quanto ao direito legal da mulher, reconhecendo que possui uma posição de intromissão injustificável na vida da mulher, se se refere à lei. 

A melhor interpretação do que ocorre aqui é que, nesta relação biológica especial da gestação de um outro ser humano dentro de nós, abortar não equivale a matar no sentido em que matar é geralmente errado: é plausível aceitar que não devemos aplicar ao aborto precoce a regra contra tirar a vida de um ser humano, ou, alternativamente, que o aborto precoce deve ser contado entre as exceções justificadas à regra.

Sugestão: veja mais detalhes de vários argumentos sobre o aborto neste artigo do filósofo Pedro Galvão: http://pedrogalvao.weebly.com/…/6/6/5/5/6655805/pgaborto.pdf ou no livro editado por ele: A ética do aborto: perspectivas e argumentos. Lisboa, Dinalivro, 2005. cf. https://criticanarede.com/fp_01.html) 

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