Curso de Bioética 2012 – Morte – Baseada no livro de Jeff
McMahan, The Ethics of Killing, Oxford,
OUP, 2002.
Preliminares.
(i) Matar é errado e a morte um
malefício em geral, mas tais coisas
poderiam ocorrer em graus variados: a extensão do erro de matar seria uma
função do malefício da morte e do erro de matar (McMahan discorda desta versão).
(ii) O tema também nos interessa pessoalmente, e para tanto temos as opções:
(a) a estratégia de negação via filosofia folk
e religião; (b) Epicuro e a inexistência de males na morte (quando ela
ocorre não mais existimos; quando existimos, ela não ocorre); (c) Shopenhauer e
a visão depressiva e pessimista sobre a vida e a morte (existir é um malefício
pelos riscos de sofrer e pela certeza de morrer, que então, torna a vida sem
sentido; (d) Tolstoi e a paz e
iluminação da morte (Ivan Ilich) após
a sua aceitação serena.
(ii) O problema da comparação
2.1. Imortalidade.
Não há ruindade na morte por causa de características inerentes, e então
temos de comparar as perdas e o que se exclui com a morte, e o que não é
perdido. A alternativa à morte parece ser a imortalidade, mas não a
imortalidade após a morte, com uma
existência alterada, mas a
continuação da mesma vida, sem a
morte: podemos então pensar que, se tal imortalidade não seria algo bom, então
a morte não é necessariamente ruim por si mesma; e nos casos em que tal
eternidade fosse um mal, a morte seria necessariamente um bem. Na literatura
filosófica temos os seguintes cenários: (1.a.) tudo o mesmo, incluindo o envelhecimento, adoecimento e fragilidades
crescentes, exceto a morte: isso seria realmente ruim [num dado ponto seria
o inferno na terra!] e a morte um bem. (1.b.) tudo o mesmo, mas como estamos agora, saudáveis, sem envelhecimento
e sem a morte: seria isso bom? Talvez
sim! Mas talvez não! Pois não escolheríamos mais entre alternativas excludentes
(todas seriam transformadas em antes e depois, diminuindo nossas oportunidades
de escolha). Mas isso é inconvincente por 3 razões: ainda teríamos escolhas; oportunidades
de escolhas não são tão valiosas dada a situação; e no geral haveria mais bens
do que males na imortalidade. (2) A eternidade poderia ser tediosa, sem valor
depois de muito tempo vivos, e, pela mesma razão, sem sermos nós mesmos depois
de muito tempo (com nenhum interesse prudencial entre nós e “nós” futuramente).
Porém, a identidade não é necessária para o interesse prudencial, ainda teríamos
interesse no futuro de nosso “cérebro”, mesmo com a descontinuidade psicológica
(o que importa é a continuidade mental); nós sempre mudamos um pouco: assim, a
imortalidade não seria tão mal, uma vida imortal não seria indesejável, e,
logo, não haveria ponto em que a morte cessaria de ser um infortúnio.
2.2. A “comparação símbolo” (token comparison)
A comparação que conta (esta morte comparada com outra,
hipotética) compara a ruindade da morte nos cenários hipotéticos diante da
intuição básica de que menos vida é pior do que mais. Na Abordagem
Comparativa da Vida (ACV): a ruindade da morte é medida em termos de seus
efeitos sobre o valor global da vida como um todo. Identidade é o que conta (se
não, a perda de grandes benefícios
com a morte pode ser menos importante do ponto de vista da vítima). Nesta
primeira abordagem o interesse resultante reflete a extensão em que a morte é
ruim e impede benefícios (causa danos), e é mais forte do que os interesses temporalmente relativos. A abordagem dos Interesses temporalmente
relativo (ITR) diz que a ruindade da morte
se mede pelos seus efeitos sobre os interesses temporalmente relativos e
não sobre o valor da vida como um todo: a morte é ruim proporcionalmente à
força dos interesses temporalmente relativos da vítima em continuar vivendo. A
força destes interesses é uma função da quantidade líquida de benefícios que
tal vida conteria e da extensão em que a vítima estivesse conectada a si mesma
no futuro (relações de unidade prudencial). ACV implica que é pior morrer logo
após alguém começar a existir, como por exemplo, num feto tardio ou
desenvolvido, o que é difícil de acreditar. ITR não implica isto, pois a grande
quantidade de benefícios que o feto perde é diminuída pela fraqueza das
relações de unidade prudencial que conectariam o feto com si mesmo no futuro. Há
casos em que as duas abordagens coincidem: o
caso do jovem paciente com câncer: um homem morre de câncer aos 20 anos. Há
um problema epistemológico: podemos
avaliar o dano pelas perdas de benefícios, mas como saber disso? Podemos
avaliar em termos de perdas de oportunidades de se ter vários benefícios, mas,
novamente, não podemos saber facilmente que oportunidades ele teria tido, pois
nossa habilidade de avalição do mau desta
morte é limitada, e possuei uma base probabilística (estatística) que se baseia
em conjecturas gerais: isso nos leva a moderar nossa avaliação da morte em termos de benefícios que ela impede,
pois ela pode ter menos disto do que nós supomos.
(iii) O problema metafísico
3.1. Pluralidade
de comparações: há muitas causas de morte e muitos futuros possíveis, o que
gera muitas comparações relativas. Este é o problema metafísico: determinar qual é o padrão de morte que se
deva levar em conta para a comparação. O
que se perde com a morte pode estar baseado em desejos que são contrariados
(por exemplo, de morrer, ou de continuar vivo), ou pode ser baseado em
oportunidade (a oportunidade de mudar de ideia, a oportunidade de boas
experiências futuras). Basear-se nisso no entanto não garante solução do
problema metafísico, pois a insatisfação ou perda de oportunidades poderia
ocorrer por outras causas que não a morte (a morte do paciente com câncer acima
poderia ser boa para ele se comparada com viver mais poucos dias com muita dor,
mau se comparada com a remissão temporária do câncer, e muito pior se comparada
com a cura do câncer. Há uma variedade de comparações que precisam ser levadas
em conta. Talvez nada seja bom ou ruim em si mesmo, mas comparativamente., e
muitas respostas para a ruindade da morte que são igualmente corretas. McMahan
porém discorda disso: em muitos casos uma avaliação e claramente mais adequada
e abrangente. Veja o caso do pedestre: uma
pessoa absorvida em seus pensamentos entra na frente de um ônibus e é morte
instantaneamente pelo impacto. Se sua
vida teria sido longa e feliz, julgaríamos a morte trágica, e seguimos para
isso um critérios imprecisos e pouco articulados (de alternativas) para
comparar com morte.
3.2. Critérios
para determinar a comparação apropriada. Um dos critérios é que, na maior
extensão possível, se deveria (a) excluir completamente a causa da morte e seus
efeitos, (b) dar à pessoa o melhor futuro que fosse possível caso ela não
morresse, (c) reservar sua vida como ela era antes da morte, (d) ser
moderadamente realístico ainda que (e) não necessariamente uma possibilidade
prática. Eles podem conflitar entre si.
(iv) O
problema da sobredeterminação
4.1. Quando
a morte teria ocorrido logo de uma causa diferente. O caso do paciente
geriátrico: mulher vive a máxima extensão de uma vida humana e morre de repente
de um hemorragia causada por um avc, quando
cada órgão já estava falhando. Tal morte é sobredeterminada porque em qualquer
alternativa à esta morte haveria a mesma vulnerabilidade a uma ação imediata de
uma causa diferente, e tal morte dificilmente seria então um infortúnio. Mas
seria estranho não considerar nenhum infortúnio nesta morte: a morte impede de
um futuro em aberto, e qualquer morte é o cancelamento imediato abrupto de
benefícios extensos e indefinidamente. Não haveria limite na quantidade de
benefícios que alguém teria se não morresse, e a morte é um fim ruim para todos
(Nagel). Isso parece confirmado por uma variante do caso do pedestre: o jovem pedestre: idem ao outro, exceto
que a autópsia revela que ele muito provavelmente morreria em uma semana se não
tivesse sofrido o acidente. Para a comparação padrão esta morte não seria um
infortúnio. Mas isso não parece proceder, pois a mãe não se sentiria melhor por
saber o resultado da autópsia, mas talvez piro ainda.
4.2. A
estratégia da herança e o problema do “terminus”. A morte em T1 herda a
ruindade da morte em T2, T3 e Tn: a morte em T1 priva a vítima de todos os
outros bens (e são mais em T1 do que em T2, e também da vida entre T1 e T2. Mas
isso parece ad hoc e arbitrário, pois
não sabemos o que seria Tn e às vezes T1 é melhor que T2; além disso: (a)
pressupões um senso particular da duração possível da vida humana; (b) há
variações individuais que independe da mera possibilidade física; (c) assume-se
que outros fatores serão iguais exceto a morte, mas isso não procede para a
qualidade da vida; (d) implica que não é um infortúnio morrer no limite máximo,
mas porque não o seria diante da possiblidade de se viver mais do que isso?
4.3. As
perdas globais no morrer. (Leila Bitar)
A
tentação de culpar a morte isoladamente como fato pela morte do jovem pedestre.
Morte como perda de um futuro longo e
feliz depende de dois infortúnios: um efetivo (acidente) e um hipotético
(aneurisma / ameaça real).
Perda
global “é a perda de todo o bem que ela (pessoa) teria em vista, mais do qual
foi privada por uma variedade de fatores incluindo sua morte” (cita o caso:
vitima de acidente). Tendência na literatura sobre a morte, de confundir a
perda causada pela morte, tomada isoladamente, como as perdas globais que uma
pessoa sofre ao morrer.
Conclui:
perda global é idêntica em qualquer das situações (acidente / terremoto,
atropelamento / aneurisma).
A
decisão sobre que evento tomaremos para fim de avaliação depende do que sabemos do futuro longo e feliz de cada
um. Cita a situação do condenado a morte chamada de morte certa, mais uma vez
para dizer que não precisamos saber como atribuir a cada infortúnio, seja ele
efetivo ou hipotético, sua devida cota da perda global.
Retoma
à estratégia da herança (mensuração) e acrescenta a determinação de um limite (nova versão do problema do
tempo ou do termo?) e a Nagel que considera a perda global das pessoas
indefinidamente extensas. No entanto, conclui que as perdas globais de todas as
pessoas não são iguais.
Discutindo
passado, presente e futuro Nagel fala que, “se não houver um limite para a
quantidade de vida que seria bom desfrutar, então pode ser que um final ruim
esteja reservado para todos nós”. Isto se nos concentrarmos apenas nas
perdas... Se, porém, nos concentrarmos nos possíveis males evitáveis pela
morte, um final benéfico aguarda a todos nós.
McMahan
acrescenta a concepção de limite de Nagel, a imposição de alguma restrição
sobre o que pode ser considerado realista acerca do futuro de uma pessoa:
Condição do Realismo. Problema do tempo (ou do termo?): sobredeterminação no
caso do jovem pedestre e da paciente geriátrica – condição extremamente vaga!!!
Apresenta
a fim de argumentação, uma situação em que os mecanismos de envelhecimento da
progéria fossem idênticos aos do envelhecimento e, em ambos os casos, a doença
em si é incurável. “Pode ser pior ter um bem em vista e depois perdê-lo, do que
simplesmente não tê-lo em vista desde o inicio”. As perdas seriam realmente
piores ou seriam mais difíceis de suportar??
Poetas
e filósofos dizem que a virtude da morte é que ela “finalmente nos liberta da
tirania, do sofrimento” (e da vida!). Em ética, “normalmente tendemos a pensar
que seria mais importante evitar o sofrimento do que aumentar o bem”, ou seja,
a vida! “E isso confirma a suposição de que chegar ao fim das possibilidades da
vida seja um infortúnio mesmo que isso não envolva nenhuma perda”
Conclusão: a morte como infortúnio
maior no caso do paciente com progéria do que no caso da paciente geriátrica. O
paciente com progéria ganhou (previamente) tão pouco da vida e a paciente
geriátrica teve uma vida plena.
[Complemento]
Anos Potenciais de Vida Perdidos – APVP
por Morte Prematura
O indicador Anos Potenciais
de Vida Perdidos quantifica o número de anos de vida não vividos
quando a morte ocorre em determinada idade abaixo da qual se considera a morte
prematura. Para cada morte ocorrida se contabiliza a quantidade de APVP
subtraindo da idade limite (aqui fixada em 70 anos) a idade em que a morte
ocorreu. Assim, uma pessoa que morreu com 30 anos, perdeu 40 Anos Potenciais de
Vida.
O total de APVP
pode ser calculado por causa, por sexo, por município ou outra variável de
interesse. Para aumentar a comparabilidade
do indicador, além de expressar os APVP sob forma de números absolutos, pode-se
calcular taxas por 1000 habitantes, APVP por óbito ou proporções em relação ao
total.
Total de APVP
|
Somatório
dos Anos Potenciais de Vida Perdidos
|
APVP por óbito
|
Total
de APVP dividido pelo total de óbitos menores de 70 anos
|
APVP por 1000 habitantes
|
Total
de APVP dividido pela população menor de 70 anos
|
Expectativa de vida ao nascer
Numa dada população, a expectativa de vida ao
nascer ou esperança de vida à nascença é o número médio de anos que
um grupo de indivíduos nascidos no mesmo ano pode esperar viver, se mantidas,
desde o seu nascimento, as taxas de
mortalidade observadas no
ano de observação. A expectativa de vida no nascimento é também um indicador de
qualidade
de vida de um país,
região ou localidade. Pode também ser utilizada para aferir o retorno de
investimentos feitos na melhoria das condições de vida e para compor vários
índices, tais como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
É calculada considerando-se, além das taxa de
mortalidade geral e infantil segundo a
classe de renda, o acesso a serviços de saúde, saneamento, educação, cultura e lazer, bem como os índices de violência, criminalidade, poluição do local onde vive a população. Segundo o IBGE, a
expectativa média de vida no Brasil é de 73,4 anos. (Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Esperan%C3%A7a_de_vida)
4.4. Abordagem
dos ganhos prévios.
4.5 Descontando
Infortúnios para os ganhos prévios.
(v) Fortuna
Global ao longo da vida.
5.1. O
padrão para avaliar a Fortuna (Daniela Marques Ferreira)
- Uma vida boa para um cão e para uma
pessoa são diferentes no que contêm de bem estar.
- Ter uma vida boa ou afortunada não é
apenas uma questão da quantidade de bem ou bem-estar que uma vida contém.
- O que parece expressar se um indivíduo
está ’se saindo bem ou mal, se é afortunado ou desafortunado é um relação entre
o nível ou total de bem-estar desse indivíduo contra o qual esse bem-estar é
avaliado.
- Substantivo para essa noção: fortuna –
termo técnico para referir ao modo como um indivíduo está se saindo ou saiu-se
na vida.
- A fortuna pode ser sincrônica ou
diacrônica – isto é, um individuo pode ser afortunado ou desafortunado em um
momento específico ou ao longo de um período de tempo.
- O interesse do autor é a medida de uma
vida inteira: fortuna vitalícia global.
- Qual é o padrão contra o qual devemos
comparar o bem-estar da vida de um indivíduo para avaliar sua fortuna vitalícia
global?
Ex: cão afortunado e um ser humano com
graves deficiências mentais congênitas (capacidade cognitiva comparável a um
cão) desafortunado
- O padrão contra qual o bem-estar de um
individuo deve ser avaliado é uma norma de bem-estar que é específica para a
espécie biológica do indivíduo.
- Cada espécie tem, portanto, uma gama
específica de estados de bem-estar disponível para seus membros.
- As maiores capacidades psicológicas
possíveis para qualquer membro de uma dada espécie fixam um limite superior
para o montante de bem e, portanto, para o melhor tipo de vida que é acessível
a um membro da mesma espécie. Ex: cão e a lagarta.
- A vida dos seres tendem a
concentrar-se em torno do grau médio de fortuna. A espécie com maior amplitude
de variação é a espécie humana.
- Abordagem da natureza da fortuna – abordagem da norma da espécie: teremos
de calcular os ganhos que uma pessoa obteve da vida ou determinar a medida em
que sua vida foi afortunada ou desafortunada globalmente, comparando-a com o
espectro de vidas possíveis para os seres humanos.
- Contra-exemplos desta abordagem:
- Criança com
anencefalia: não possui capacidade para consciência e simplesmente não teria
capacidade para o bem estar – não é afortunada ou desafortunada. A abordagem da norma da espécie é uma
explicação da fortuna que se aplica apenas aos seres que possuem capacidade
para o bem estar.
- Superchimpanzé: chimpanzé submetido à terapia genética para
desenvolver o cérebro semelhante ao cérebro humano e que depois sofre um dano
cerebral. De acordo com a abordagem da
norma da espécie ele foi afortunado no período em que exerceu suas
capacidades psicológicas aprimoradas mas sofreu um infortúnio ao perder suas
capacidades superiores com o dano cerebral. Outro problema é que todos os
outros chimpanzés poderiam ser considerados menos afortunados.
- Perda de um
milhão de dólares por um multimilionário
- Esta abordagem da norma da espécie admite que possam haver outras razões
para se declarar um indivíduo desafortunado, e não apenas que a vida do
indivíduo se encontra na parte inferior do espectro para sua espécie.
- Portanto, temos que abandonar a idéia
de que a boa ou má fortuna de um ser depende de uma comparação entre a vida
dele e as vidas dos outros membros da espécie. Pois assim como o superchimpanzé
um indivíduo pode ser um membro bastante desviante de sua espécie.
- A questão de saber se a vida de uma
pessoa é afortunada ou desafortunada depende da forma como sua vida se compara
com aquilo que é possível dada sua
própria natureza ou constituição individual.
- O cérebro de cada indivíduo,
independente da espécie, parece estar limitado em relação às suas capacidades
psicológicas: seu hardware neuronal estabelece limites para suas capacidades e
potencialidades cognitivas e emocionais. Esses limites definem ou delimitam a
capacidade do indivíduo em relação ao bem-estar. Ex: cão em frente à cópia da Devota Profésion de Goya – não obterá
qualquer gratificação estética. Se for da natureza de um indivíduo não possuir
a capacidade psicológica para obter certo bem, a ausência daquele bem em sua
vida não será um infortúnio.
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