Hand-Out: McMAHAN, Jeff. “Killing”. In: The Ethics of Killing. Oxford, Oxford University Press, 2002, pp. 189-265.
1. O erro (wrongness) de matar e o mal (badness) da morte.
1.1 Duas
teorias.
A crença moral predominante (matar pessoas é normalmente errado) e
a busca pelos seus fundamentos:
um caminho é comparar matar animais não-humanos com pessoas
(humanas ou não-humanas).
Outras crenças comuns: matar um ser humano é pior do que matar um
animal; um ser humano sofre maior prejuízo com a morte do que sofre um animal,
matar um animal superior na escala de complexidade mental (um cão) é pior do
que um inferior (um peixe).
Matar envolve infligir o mais sério dos danos à vítima e tal dano
é a razão do erro de matar.
Se a idéia acima procede podemos dar sentido às crenças comuns
citadas (todas).
Teoria Baseada no Dano Causado (Harm-based Account ou Abordagem
Comparativa da Vida): o ato é errado por causa do dano à vítima
e o ato é pior em função do grau de danos que ele causa; assim, matar uma
pessoa é um erro grave e matar um animal menos grave.
Uma virtude desta abordagem é explicar nossas crenças comuns sobre
humanos e animais e sobre animais entre si. Um problema é a suposição de que a
identidade é o que importa, pressupondo uma abordagem comparativa da quantidade
de vida perdida com a morte.
Uma opção mais sólida é abandonar a suposição de que o que conta
mais é a identidade, ao invés da unidade de relações prudenciais (do interesse
afetado do indivíduo como seus interesses temporalmente relativos):
eles podem ser diferentes do que seria no interesse deste indivíduo (o
melhor em conjunto para sua vida), mas por outro lado
leva em conta a temporalização deste interesse e dos desejos interligados deste
indivíduo.
Essa é a teoria
dos interesses temporalmente relativos do
erro de matar: o erro se refere aos efeitos sobre a vítima mas não é a
identidade que conta, e sim, as relações de unidade prudencial entre as fases
de vida, que podem variar. O erro não está somente no dano em geral mas em afetar
negativamente os interesses (temporalmente relativos) da vítima.
Cf. 3.1. abaixo
1.2 Matar animais.
Por que o interesse temporalmente relativo de um animal em viver é
mais fraco do que o de uma pessoa e, mesmo, normalmente mais fraco do que o de
um feto tardio e de um bebê humano? Há 6 pontos a considerar:
1º- ao morrer um animal perde substancialmente menos do que perde
uma pessoa: primeiramente porque a qualidade dos bens é menos variada e
complexa dada a capacidade cognitiva e emocional mais limitada de um animal;
Além disso, em 2º lugar, os bens que se perdem são em quantidade
menor: muitas espécies são limitadas pela sua biologia a uma extensão máxima
que é mais curta do que a das pessoas humanas, mesmo em sua média;
3º Os bens para pessoas são mais valiosos, dado o desejo e vontade
(e merecimento) ligados a eles, ao contrário dos animais, que os têm sempre
não-antecipados e sem ligação com o futuro.
4º Dada a narrativa estrutural que demanda completude
(finalização) e significação (passada), as pessoas autonomamente estabelecem
propósitos para suas vidas, formam relações estruturadas com os outros, e criam
expectativas e dependências que requerem preenchimento, algo que não ocorre com
o animal porque nele este potencial para uma unidade narrativa complexa está totalmente
ausente.
5º - nos animais falta a dimensão do passado como algo que torna
significativo à luz da biografia os fatos prévios da vida como investimento de
tempo e recursos para o futuro com esforço e sacrifícios às vezes dolorosos e
tediosos; animais não se arrependem e tentam mudar de vida, ou pedir perdão e
tentar compensar outras pessoas pelos atos errados;
6º - Pessoas têm uma dimensão inter-comparativa que falta aos
animais;
7º - A unidade prudencial de relações dentro de uma biografia animal
é muito mais fraca do que a de uma pessoa: há muito pouca unidade psicológica
entre um animal num dado tempo t1 e animal no tempo t2.
Assim, matar uma pessoa é pior do que matar um animal. (Um feto
também ganha do animal quando comparamos a
quantidade de bem em jogo no futuro e o vínculo de unidade prudencial potencial
– p. 199).
Observação: Aparentemente isso endossa a visão tradicional “bem-estarista” (o
que importa mais no caso do animal é evitar o sofrimento e propiciar bem estar,
e não mantê-lo vivo), mas isso não é o caso, pois não passa no teste dos
critérios citados em combinação: algumas vezes a perda do animal com sua morte
é maior do que a perda imediata de bem estar ou o sofrimento futuro (não
causado pelos humanos, obviamente: a diferença entre sofrimento esperado e
sofrimento provocado pelo agente humano que deliberadamente
mantém ou tira a vida do animal).
2. Animais e seres humanos gravemente deficientes mentais.
2.1 As opções: antropomorfismo, elitismo, igualitarismo,
assimilação convergente.
A teoria da igualdade levanta dois problemas de igualdade a partir
da comparação acima.
A versão da teoria do interesse temporalmente relativo explica bem
porque é pior matar pessoas do que animais na diferença entre nossas
capacidades psicológicas; porém, há seres humanos que também não possuem tais
capacidades senão no mesmo grau que um animal ou abaixo dele.
O problema torna-se difícil no caso dos seres humanos gravemente
prejudicados mentalmente, quando não houve ainda realização das capacidades complexas, ou nem nem
há potencialidade para as capacidades cognitivas e
emocionais típicas de uma pessoa. Neste caso, não é pior, prima facie (“other things equal”), matar um
ser humano não-típico, do que matar um animal com capacidades psicológicas
comparáveis. Mas isso é contra-intuitivo: seria permitido, por exemplo,
matar seres humanos em experimentação científica, o que é absurdo.
Há quatro modos de evitar ou diminuir as tensões surgidas:
antropocentrismo (manter a visão comum de extensão a todos os humanos do mesmo
estatuto moral, mas com fatores exteriores acrescentados para salvar a intuição
de que animais contam menos, por exemplo, com invocação do pertencimento à
mesma espécie); elitismo (mudar a visão comum, do lado dos humanos, e
igualá-los aos animais, com menor estatuto moral); igualitarismo radical: mudar
a visão comum, do lado dos animais (animals right) e igualá-los aos humanos, com o
mesmo estatuto moral elevado; assimilacionismo convergente (mudar parcialmente a visão comum, mas dos dois lados, humanos e animais,
ambos com estatuto moral semelhante, mas ainda diferente do estatuto das pessoas).
Elitismo aceita rebaixar o status dos humanos não-típicos prima facie, contornando as
conseqüências práticas com os efeitos colaterais para outros humanos típicos,
com critérios externos (arbitrários) como a filiação à espécie, ou com o padrão
normal para a espécie como critério. O igualitarismo aceita elevar o status dos
animais, questionando a visão comum. Porém, ele ainda necessitaria estabelecer
racionalmente o campo de inclusão, o que torna instável essa extensão. O
mesmo vale para seres humanos não típicos.
2.2 Filiação à espécie humana. (ser um organismo individual com
uma alma, ou, com uma genética humana)
O antropocentrismo combina elementos do elitismo e do
igualitarismo.
Há duas estratégias: identificar diferenças intrínsecas ou extrínsecas (identificar a diferença em propriedades relacionais ou de perspectiva).
A primeira pode ser de dois tipos: a propriedade é metafísica
(“alma”) ou é biológica (“genética”).
(1) A suposição metafísica da alma: “Todos os seres humanos têm
alma, mas não os animais”. Porém: [i.] tal reivindicação não é empírica e
racionalmente sustentável; [ii.] em qualquer versão robusta (como a
cartesiana), é incompatível com o que nós sabemos sobre a dependência mental da
organização e funcionamento do cérebro; [iii.] se adotamos uma noção totalmente
separada da consciência ou da mente no sentido trivial, nossa noção se torna
totalmente arbitrária para nos distinguir dos animais ou de qualquer ser que
supostamente não possuiriam também uma alma; [iv.] mesmo se verdadeira, a tese
não sustenta apenas visão normativa tradicional (animais inferiores), porque
seria pior tirar a vida de um animal, já que ele só tem esta vida!
(2) 2.1. Suposição genômica: “todos os seres humanos são
geneticamente membros da espécie humana, (mas não outros animais)”. A simples
pertença à mesma espécie é a fonte do valor intrínseco de todo ser humano: o
que conta não é a capacidade psicológica real ou potencial, mas seu status
físico. Porém: [i.] a complexidade física e biológica de uma formiga é maior do
que um embrião, um grupo de células simples; [ii.] uma célula humana é
geneticamente humana, mas não tem valor intrínseco ou sagrado; [iii.] ter tal
gene não nos compromete com a espécie, necessariamente, pois pode haver animais melhorados geneticamente a ponto de terem genes
humanos em alto grau; [iv.] a definição de uma espécie é meramente biológica,
não ética, e pode ainda não estar claro porque a espécie tem significância
moral; [v.] pode ser plausivelmente sustentado que não somos idênticos a um
organismo biológico, que parecemos ser, mas somos apenas dependemos de um
organismo, para existirmos como mentes incorporadas, o que torna as
propriedades biológicas predicadas indiretamente ou por extensão (o que importa
é o que tais genes desenvolvem, as nossas capacidades emotivas e racionais), e
têm então menos importância do que as propriedades psicológicas predicáveis
diretamente. Mas animais possuem algum grau destas mesmas capacidades.
Digressão sobre filosofia da biologia: qual seria a importância do
genótipo? (98,4% de nossos genes estão num Chimpanzé): [vi.] animais
transgênicos refutam que a importância está realmente nos genes; [vii.] se o
critério não estiver nem no fenótipo nem no genótipo, mas no intercruzamento,
ele será: ou obscuro cientificamente, pois há problemas com este método para
estipular as espécies; ou será irrelevante moralmente (a capacidade de
intercruzamento como critério de valor para os deficientes?). Assim, [viii.],
pertencer à espécie é um fato puramente biológico, como pertencer a uma raça ou
a um gênero sexual: algo arbitrário se usado para estabelecer o estatuto moral.
Variação de 2: 2.2. O valor do indivíduo da espécie deve ser
medido pelo padrão esperado na espécie em situação normal. Os deficientes são
indivíduos desafortunados, mas não os indivíduos de outras espécies, que mesmo
em situação normal estariam abaixo da espécie humana. Porém, [i.] não é ser
membro da espécie que realmente conta aqui, mas o que a espécie tem de
característico (ser racional; ser sensível à moral; ser autônomo etc); [ii.]
não fica claro porque aos membros da espécie que não tenham aquelas
características não deve ser dado o mesmo status moral já que tem outras características e não aquelas e
também são desafortunados por terem nascido nesta ou naquela espécie, assim
como nós poderíamos ter nascidos nesta ou naquela “casta”; [iii.] aqui há o
mesmo problema de arbitrariedade que vimos em [vi.] anteriormente: um
superchimpanzé não será uma pessoa mesmo tendo as características de uma por
ter os genes que realizam as capacidades mentais humanas, já que não
pertencerão à espécie humana.
Conclusões: (a) que todos os humanos têm alma e os animais seria
moralmente significativo, mas de fato não existe tal diferença (não existem
almas, ou não existe apenas a alma humana); (b) que todos os humanos pertencem
à espécie humana é um a diferença que existe, mas que é moralmente irrelevante
por não gerar sustentação do tipo moral (não ser agencialmente neutra).
2.3 Co-filiação à espécie como uma propriedade relacional – uma
relação especial (razão adicional para proteger deficientes mentais humanos,
mas não outros animais).
A diferença pode ser sustentada como algo extrínseco: ser nascido de humanos típicos e ter
relações com humanos típicos provê uma forte razão (relacional ou
perspectivista) para a igualdade de status entre humanos mas não para com os
animais.
Há duas versões desta tese: a relacional e a perspectivacional.
Elas são diferentes em escopo: a segunda visão permite qualquer opção desde que
pessoal ou particular.
A primeira incorpora que o valor da parcialidade (proteção; responsabilidade) mas se mede também pelo desvalor que ela causa na relação com outros que estão fora do escopo (por ex., nos
membros de outras nações, quando o grupo é nacional e o valor da parcialidade para com os nacionais é o que está em questão), ou seja, os usos da
parcialidade podem estar ligados a abusos contra "os de fora" (outros membros);
e mesmo assim é estranho uma identidade na espécie, pois não há sentido sem
outras espécies similares.
Uma forma de relação especial é a parental: mas não se trata de
uma relação especial por causa da espécie, mas por causa dos laços familiares
(mas isso se dá entre humanos e animais de estimação!).
Assim, a visão tradicional tem de ser mudada: nós subestimamos o
valor dos animais e superestimamos dos humanos similares a eles.
2.4 Assimilação Convergente (nova visão, mais coerente)
A melhor maneira de manter nossas intuições e evitar ou diminuir as tensão geradas pela comparação entre humanos deficientes e animais é assimilar um ao outro, o que, contra o elitismo e o antropocentrismo, faz subir o estatuto dos animais (e na prática, faz subir enormemente o valor dos animais), e contra o igualitarismo radical e o antropocentrismo, mantém os animais ainda abaixo das pessoas, mas também os humanos mentalmente deficientes, que ficarão ligeiramente abaixo das pessoas (e na prática, continuarão com o mesmo valor, exceto em situações raras).
Esta interpretação sugere que não se deve causar dor seja em quem for, animal ou humano; que normalmente,
não se deve tirar a vida seja de animais seja de humanos gravemente retardados ou sem
cérebro, exceto se houver um motivo ou motivos relevantes, com
alguma proteção adicional aos humanos mantida, em algum grau, por causa dos
pais, parentes, e da autoproteção social necessária a todos (e porque há a alternativa do uso de animais de mesma capacidade mental, que estão abaixo dos humanos deficientes). Esses pontos dão
razões indiretas para tratar igualitariamente a humanos com deficiências
mentais (o que rebaixa, ainda que levemente, o status dos humanos
gravemente retardados, e altera para cima o status dos animais);
[a tese é de uma moralidade de dois âmbitos ou dois critérios para garantir prerrrogativas:
Moralidade do Respeito: normalmente não prejudicar e não tirar a vida de pessoas, independentemente do contexto e dos motivos utilitários que poderiam sugerir que isso fosse bom, ou maioria: o respeito estrito e a igualdade devem ser a norma apropriada para pessoas - razões deontológicas morais e jurídicas. Isso não vale só para humanos, mas também para animais com capacidades de ser uma pessoa (primatas, golfinhos e baleias), e não vale para humanos que não as possuem (anencéfalos; deficiências mentais de mesmo nível; embriões humanos);
Moralidade Utilitarista: Os seres que não são pessoais mas podem sofrer e podem ser beneficiar de uma vida mais longa do que mais curta, normalmente, não devem ser prejudicados – sofrer danos – e não devem ser intencionalmente mortos sem um motivo seriamente relevante, mas isso dependerá do contexto e das razões utilitárias, que podem permitir que se mate um ser meramente consciente se isso for bom para todos, ou ao menos para a maioria, não havendo alternativas – razões consequencialistas.
O âmbito dois não vale para animais com capacidades psicológicas similares a pessoas, que são pessoas, como outros primatas, baleias e golfinhos – talvez polvos – e vale, potencialmente, para fetos e recém nascidos humanos, além de seres humanos com graves deficiências mentais.]
3. Igualdade e Respeito
3.1. Teoria do Interesse
temporalmente relativo.
A teoria baseada no dano ou
na comparação vital tem a implicação implausível de que matar um feto é prima facie pior (mais seriamente
objetável) do que matar uma criança ou um jovem, porque nesta abordagem a
identidade (física, numérica) é a principal base da preocupação consigo (egoistic concern) quanto ao futuro,
avaliando o dano da morte pela comparação entre o que um ser teria se não fosse
morto em termos de bens perdidos, dano ou falta dele que torna pior ou melhor a
vida deste ser como um todo (globalmente; em toda sua existência).
Se, todavia, a identidade não
é base da preocupação consigo, se alguém “vai melhor ou pior como um todo” (no
futuro) pode não ser o que realmente interessa para o ser a quem nos referimos,
e, havendo conflito entre o que o que seria melhor e o que seria do interesse
deste ser, a moralidade deveria nos dirigir para a segunda opção (os
interesses). Mantêm-se a teoria do dano mas interpretando-a como preferências e
não como oportunidades, e com uma taxa de desconto (abordagem dos interesses temporalmente relativos).
Uma implicação aparentemente
implausível disto é que matar humanos inocentes gravemente retardados não seria
pior do que matar certos animais, o que é uma poderosa objeção. Mas a intuição
comum é que está, em tese, errada, além de que a prática realmente existente de
matar animais está errada, e a nova intuição então não divergirá totalmente do
que já temos de proteção, além de proteção adicional aos humanos por causa das
relação entre humanos e da alternativa do uso de animais quando for correto
matar um ser humano retardado.
Mas há outro problema para a
igualdade que parece incontornável dentro do modelo da teoria do interesse
temporalmente relativo: se o tipo e a intensidade do interesse do paciente fazem variar o valor ou desvalor de sua vida
e de sua morte, então, como há variações entre o tipo e a intensidade do
interesse mesmo entre humanos normais
quanto à quantidade de bem a ser desfrutado em condições subjetivas e objetivas
variáveis, então, em tese, também há variação no valor da vida de humanos
normais! Isso é mais contraintuitivo ainda.
Há vários fatores que fazem
variar a intensidade do interesse na continuidade da vida: grau de suas
capacidades emotivo-cognitivas; o temperamento e disposições individuais
subjetivas; as circunstâncias do indivíduo; a expectativa de vida dada pela saúde
ou pela idade; etc. (cf. os 6 tipos)
Consequentemente, haverá
variação na intensidade do interesse:
ele será mais forte em certos seres e mais fraco em outros; mas então, por
coerência, matar seres com interesse mais intenso é pior do que matar os seres
com interesse mais fraco.
Esta é uma implicação
(aparentemente) implausível, pois contraria nossas intuições morais mais fortes
de igualdade humana (já incorporadas juridicamente): aceitamos fortemente que
matar em qualquer destes casos é igualmente
errado e proibido fortemente.
A tese da moralidade legalmente incorporada é a tese da igual incorreção em se matar estes seres
humanos, com estas variações na sua capacidade.
[Porém, na verdade, isto não é totalmente exato como descrição das nossas
intuições completas: na fila de transplante damos menos prioridade para casos
perdidos ao invés de casos com alguma chance de sobreviver - exemplo em aula].
No caso padrão e no
exemplo de um matador beneficente que
visasse salvar mais vidas com a morte de algumas outras, matar o mais velho ao invés
do mais novo é um imperativo da visão do interesse temporalmente relativo,
um que está em desacordo com nossas intuições mais fortes. (assim como matar o mais depressivo).
Duas soluções: (1) rejeitar,
de novo, as intuições e encontrar uma visão mais coerente, ou 1.1 criticando o
estatuto epistemológico delas (ou - 1.2: criticando o modo de apresentação do
problema,) tentando mostrar que não há incompatibilidade com a intuição
principal de que matar pessoas é algo
terrivelmente errado, mesmo havendo variações entre o valor da vida de pessoas;
(2) rejeitar a teoria e refiná-la ou suplementá-la com uma teoria deontológica do respeito pelas pessoas.
3.2 O requisito do Respeito pelas Pessoas.
(A) Uma maneira de descrever tal requisito é ainda com
a teoria do interesse temporalmente relativo: se um ser é uma pessoa, então não
haveria mais variação a ser considerada na força de seu interesse em continuar vivendo, depois de certo limiar, todas
as pessoas teriam o mesmo interesse.
Mas isso confunde dois conceitos de valor da vida, o
valor determinado pelos conteúdos de experiência (uma vida valiosa de se viver)
e o valor ou dignidade do indivíduo, que é o sujeito daquela vida (e ter a mesma dignidade
no segundo sentido não implica em se ter a mesma vida valiosa no primeiro
sentido).
A variação no interesse ocorre por causa do primeiro sentido:
a ruindade de morrer tem a ver com o valor retirado da vida que varia de pessoa
para pessoa também. Assim, ou a teoria do interesse não é toda a estória acerca
da moralidade de tirar a vida, ou nossa intuição de que é igualmente errado
matar qualquer pessoa, independentemente do valor desta vida, está errada.
(B) Outra possibilidade: a ruindade da morte varia e
tem a ver com graus de intensidade do prejuízo e do interesse, mas o erro
(wrongness) de se tirar a vida é uma função não disto, mas do valor da pessoa,
da dignidade da vítima: tirar a vida de uma pessoa (insubstituível; cf. Singer e o receptáculo de valores) contra sua
vontade é o maior dos erros (é irreversível) e é um erro contra o respeito que
pessoas merecem (é incompensável).
Observação: o respeito é devido à pessoa e não às suas
capacidades (às bases do respeito): tal equívoco é cometido pelos defensores da
sacralidade da vida – ver Juiz Scalia e o seu argumento de que o valor da vida
está acima da vontade individual do doente que quer morrer, ou seja, matar
destruiria um ser de valor incalculável e então reduziria o total de valor
intrínseco no mundo. Nesta visão o sujeito é um receptáculo (um container) de valor inerente. Mas, como
o valor da vida está ligado ao ser que experimenta tal valor, o valor inerente
de uma pessoa está ligado ao sujeito que possui tal propriedade, e não à
propriedade em si mesma, separada do sujeito.
A segunda opção (o ruim varia com o valor da vítima) é
uma opção plausível (como a teoria do dano e do interesse também o são) –
compatível e explanatória das intuições fortes. Mas ela é compatível com a
possibilidade de variação do valor intrínseco, se combinada contingentemente
com a teoria do interesse - mais capacidades, mais dano - e de variação
numérica – matar um número maior de pessoas é pior do que um número menor.
[Há ainda duas objeções: i. e ii.
(i) Ele torna o erro de matar totalmente dependente do status da vítima, e abaixo de certo limiar, não haveria valor inerente a ser considerado, enquanto acima, haveria valor total; mas isso contraria a intuição de que há graus variáveis de danos abaixo do limiar.
(ii) Se a pessoalidade é uma função das capacidades racionais e autônomas então ainda há como haver variações entre pessoas pois estas capacidades são variáveis, e uma conseqüência disto seria aceitar que o valor inerente varia entre pessoas mesmo assim (matar pessoas mais autônomas seria pior do que matar uma menos.
Como respostas a isso pode-se alegar:
(1º) a pessoalidade estabelece um corte acima do qual todos cessam de ter variações na capacidade psicológica (todos são pessoas no mesmo grau – isso seria “ser uma pessoa”), mas isso parece uma estipulação meramente ad hoc;
(2º) as variações não aumentam ou diminuem o valor inerente, pois este seria como que uma propriedade de âmbito, mas isso não é incompatível com a tese da variação.]
(i) Ele torna o erro de matar totalmente dependente do status da vítima, e abaixo de certo limiar, não haveria valor inerente a ser considerado, enquanto acima, haveria valor total; mas isso contraria a intuição de que há graus variáveis de danos abaixo do limiar.
(ii) Se a pessoalidade é uma função das capacidades racionais e autônomas então ainda há como haver variações entre pessoas pois estas capacidades são variáveis, e uma conseqüência disto seria aceitar que o valor inerente varia entre pessoas mesmo assim (matar pessoas mais autônomas seria pior do que matar uma menos.
Como respostas a isso pode-se alegar:
(1º) a pessoalidade estabelece um corte acima do qual todos cessam de ter variações na capacidade psicológica (todos são pessoas no mesmo grau – isso seria “ser uma pessoa”), mas isso parece uma estipulação meramente ad hoc;
(2º) as variações não aumentam ou diminuem o valor inerente, pois este seria como que uma propriedade de âmbito, mas isso não é incompatível com a tese da variação.]
Podemos ter dois caminhos para chegar ao conteúdo da exigência de respeito, um dedutivo (conceitual) e um indutivo (histórico) para responder a isso. O melhor é o indutivo, pois explora mais a fundo nossas
intuições.
3.3 As bases
da Dignidade das Pessoas.
Nosso ponto principal é então determinar se um ser
está acima ou abaixo da linha que separa a moral do respeito inerente da moral
do bem-estar e dos interesses: a primeira torna mais difícil justificar tirar a
vida, a segunda mais fácil.
(R1) sobre a base da dignidade, alguns defendem de que todos
somos iguais e temos a mesma dignidade “aos olhos de Deus”: cada indivíduo
humano carrega tal natureza essencial. (W. James). O problema é como entender
exatamente essa essência que todos partilham).
Outras respostas são as kantianas.
(R2): Kant argumentou que ser racional e autônomo é a
base de nossa dignidade. Tal natureza porém é inteligível e não sensível, por
isso não varia com capacidades contingentes. Assim, Kant transformou tais
propriedades em “transcendentais”. Mas quais seres sensíveis possuem tais
naturezas transcendentais?
Exatamente os seres humanos e só eles, para Kant [ver p. 252: conclusão 1].
Exatamente os seres humanos e só eles, para Kant [ver p. 252: conclusão 1].
(R3) Rawls sugeriu que a potencialidade para uma
capacidade moral (a personalidade moral: capacidade de uma concepção de bem e
de justiça) explica nossa dignidade e o requerimento do respeito: só seres
capazes de reciprocar podem ter uma moral de respeito inerente, mas não outros.
Mas e os seres humanos que caem fora do escopo? Ainda seriam, para Rawls,
potenciais reciprocadores, se são crianças ou doentes (reversíveis), e seria
meramente arbitrário excluí-los dada a potencialidade, além de que isso é congruente com nossas intuições. Isso, porém, não é um argumento: porque
exatamente temos de ver a potencialidade mais como a cor da pele (que é arbitrária de ser usada moralmente) e não como a falta da
personalidade dos animais? E qual a razão para aceitar a intuição sobre
crianças além de que já aceitamos? E como integrar fetos e doentes mentais
irreversíveis? [ver. p. 254: conclusão
2].
(R4): Margalit manteve a distinção kantiana
“sensível/inteligível” como distinção entre determinação causal e liberdade
prática existencial (capacidade de descontinuidade entre passado e futuro).
Novamente isso falha para os casos marginais.Isso coloca o risco de, se o
determinismo for verdadeiro – e parece que ele é – então não temos razão para o
respeito baseado na dignidade das pessoas; todavia, isso não parece afetar
nossa distinção dos animais, e nossa ideia do valor das pessoas [cf. p. 256: conclusão 3; cf. 2.2: alma;
espécie]
(R5) Quinn defendeu que a propriedade das pessoas que
as tornam dignas de respeito igual e inerente é o exercício real da autonomia:
a habilidade (dadas as capacidades psicológicas de pessoas maduras) de formar
um quadro da própria vida e decidir por si mesmo. Porém, tal capacidade não é
questão de tudo ou nada, e pode haver variação na intensidade de autonomia dos
seres. Além disso, outros atos também são opostos à autonomia das pessoas
(suicídio contra boas razão) e não
são criticados mas defendidos: parece então que a autonomia não é o único
requisito para a moralidade de matar, mas implica também em requisitos de
bem-estar e interesses. [cf. p. 258:
conclusão 4] Outro problema é que tal perspectiva não inclui nem explica
outras intuições fortes, como a proibição de trocas entre a vontade autônoma de
vítima (que proíbe) e a vontade autônoma dos beneficiários da morte dela (que permitiria
o ato de matar - e se são maioria, venceriam). A resposta de Quinn é que cada
pessoa tem interesse interno sobre si; o interesse sobre outros será sempre
limitado pela autoridade individual sobre si que eles também possuem. Isso é
questionável em muitos casos e perguntaríamos por que não também sobre a
moralidade de matar.
(R6) McMahan sugere que a moralidade em geral e a
moralidade de tirar a vida em especial se divide em ao menos duas regiões: uma concentrada nos
interesses e no bem estar; outra no respeito inerente e igual. A discussão
sobre as bases da dignidade/ respeito sugerem ainda um certo agnosticismo (não sabemos em que
acreditar), combinado com: tal base estará ligada com a pessoalidade entendida como a posse das capacidades superiores dos mamíferos que nos distinguem dos outros
animais e de outros seres humanos também; o respeito é antes de tudo, ou ao
menos inclui fortemente,, o respeito pela determinação autônoma da vontade pessoal; isso deixa as
questões principais mais difíceis sem boas respostas, mas muito dos problemas
práticos podem ser esclarecidos e iluminados com estes recursos e com a
exploração direta dos problemas particulares ligados aos casos marginais. Há
uma arco de indeterminação nestes casos. O status das crianças ajuda neste
ponto? Pode ser que sim. Elas não tem autonomia plena e ao mesmo tempo têm
suficiente autonomia: estão em transição entre um status semi-potencial (não é
só potencial) e atual (não é plena autonomia), como estariam os primatas como
Gorilas; seu status não é governado totalmente pelo valor intrínseco mas nem
pelos interesse temporalmente relativos. [cf.
p. 263 e 265: conclusão 5]
* * * * * * * * * * *
Questões para aprofundamento:
1 - Diferencie as duas teorias sobre o valor da vida e sobre o erro de matar. (1.1. e 3.1. acima)
2 - Por que o interesse do animal é mais fraco do que o de uma pessoa no que diz respeito à continuidade da vida?
3 - Qual o problema 1 da abordagem do I.T.R. para a igualdade humana? Resuma as opções para resolvê-lo.
4 - Por que a filiação à espécie humana não seria um bom critério de distinção dos humanos diante dos animais com mesma capacidade mental?
5 - Como a interpretação da Assimilação Convergente resolve o problema? (Mas qual era mesmo o problema?)
6 - Qual é o problema 2 da abordagem do ITR para a igualdade humana?
7 - Explique o requerimento do Respeito pelas pessoas, porque foi introduzido, e as duas interpretações disto.
8 - Quais as duas interpretações padrão da dignidade da pessoa humana como fim-em-si?
9 - Explique a teoria de McMahan dos dois âmbitos de "direitos" ou status moral.
* * * * * * * * * * *
Questões para aprofundamento:
1 - Diferencie as duas teorias sobre o valor da vida e sobre o erro de matar. (1.1. e 3.1. acima)
2 - Por que o interesse do animal é mais fraco do que o de uma pessoa no que diz respeito à continuidade da vida?
3 - Qual o problema 1 da abordagem do I.T.R. para a igualdade humana? Resuma as opções para resolvê-lo.
4 - Por que a filiação à espécie humana não seria um bom critério de distinção dos humanos diante dos animais com mesma capacidade mental?
5 - Como a interpretação da Assimilação Convergente resolve o problema? (Mas qual era mesmo o problema?)
6 - Qual é o problema 2 da abordagem do ITR para a igualdade humana?
7 - Explique o requerimento do Respeito pelas pessoas, porque foi introduzido, e as duas interpretações disto.
8 - Quais as duas interpretações padrão da dignidade da pessoa humana como fim-em-si?
9 - Explique a teoria de McMahan dos dois âmbitos de "direitos" ou status moral.
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