quarta-feira, 22 de agosto de 2018

RELIGIÕES E ÉTICA

"Mahavira, the Jain patriarch, surpassed the morality of the Bible with a single sentence: "Do not injure, abuse, oppress, enslave, insult, torment, torture, or kill any creature or living being." Imagine how different our world might be if the Bible contained this as its central precept." (― Sam Harris, Letter to a Christian Nation). Não sei se você já se fez. Já me fiz pergunta bem similar: quando ainda adolescente questionei a mim mesmo por que o Novo Testamento não condenou a escravidão, ao contrário, pregava aos escravos que fossem obedientes aos seus donos, assim como pregava às mulheres que fossem submissas aos maridos, além de pedir que nos submetamos ao Estado, como proveniente de Deus, na época, o Estado romano. Ao contrário de outros adolescentes ou jovens que  ao chegar a tais questionamento e não encontrar boas respostas, abandonam a religião, eu continuei, na época, a ser cristão, ainda que não mais do tipo ortodoxo, tentando sempre, desde aquele tempo, combinar a ética humanista com a espiritualidade mais tradicional (e recentemente adotando outra resposta).

Sobre Mahavira e o Jainismo, numa pesquisa superficial, não encontrei a oração "não escravize qualquer ser vivo" (o que o deixaria claramente à frente da Bíblia e do Alcorão), mas confirmei que para ele, Mahavira, a não violência (ahimsa), tanto a violência de tirar a vida de uma criatura, quanto a de causar danos físicos, era de fato o núcleo principal de todo seu ensinamento religioso e moral, a ponto de incluir explicitamente os outros animais no dever de não matar, algo que supera sem sombra dúvidas a moralidade das religiões tradicionais ocidentais. Algo similar se pode dizer das outras religiões orientais semelhantes, como o Budismo e o Hinduísmo. As regras e orientações principais de Mahavira (Ahimsa - não causar dano e sofrimento a qualquer ser (não violência); Satya - evitar a mentira; Asteya - não se apropriar do que não nos foi dado; Brahmacharya – evitar a má condita sexual e não abusar sexualmente dos outros; Não se intoxicar com álcool e drogas [Aparigraha - não acumular nem se apegar às coisas e valores materiais]) estão na ética da Yoga, que tem também, a yoga, outros cinco princípios (noutra postagem falo delas), e na ética do chamado caminho óctuplo, ou das oitos sendas, do Budismo. Todos incluem, em alguma medida significativa, os animais, e pregam ou ao menos valorizam explicitamente o vegetarianismo, como compromisso ético e religioso.

Porém, lembremo-nos já, o velho testamento da Bíblia cristã, algo compartilhado pela Torá do judaísmo, possui, entre os dez mandamentos da lei de Deus, que não se deve matar, nem roubar, nem levantar falso testemunhl, algo como evitar a mentira, a condenação da má conduta sexual (da infidelidade), o pedido para cuidar dos pobres. A regra de ouro é parte do Alcorão ("Ninguém é fiel a Alá até que queira aos outros o que quer para si) e os profetas judeus pregavam o respeito aos órfãos, às viúvas e aos estrangeiros, os mais vulneráveis na sociedade da época. No novo testamento cristão, que mantém os mandamentos, acrescenta a famosa regra de ouro mas em versão mais exigente: a positiva "faça aos outros como queres que eles façam a vocês"; também diz para se interpretar todas as diretivas relativas à conduta para com outros seres humanos como amor ao próximo como a si mesmo, ou, mais ainda, no amor aos outros como Cristo amou a humanidade, algo que nos levaria além da regra de ouro. Daí à inclusão dos animais, como em São Francisco, há um passo pequeno, ainda não incorporado pela maioria cristã.

Assim, não acho que Sam Harris esteja certo, não totalmente, ao menos; penso que o cristianismo não pode ser bem avaliado apenas considerando o que fizeram ou fazem "nações cristãs" pouco coerentes com a ética cristã, especialmente a que ele se refere, os USA atualmente. Houve muito no passado e ainda há coisas que desabonam o cristianismo, assim como contra o judaísmo e o islamismo, religiões monoteístas irmãs. Mas o que as pessoas fazem com boas ideias não é ainda um bom argumento contra as próprias ideias, e as tradições orientais citadas, vez ou outra, especialmente quando conectadas com algum poder político ou econômico constituído, também cometeram ou endossaram coisas muito ruins, como castas inferiores, sujeição das mulheres, discriminação contra os gays, e sim, por incrível que possa parecer, violência pura e simples. Um exemplo. Recentemente ficamos sabendo de como os monges lideres religiosos budistas, em Myamar, pregam e se insurgem contra a minoria islâmica rohingya, minoria que sofre vários tipos de discriminação e injustiça. Recentemente passou, em Myamar, a sofrer genocídio, e isso tudo com apoio dos principais líderes religiosos budistas. 

Mas nem o budismo nem o cristianismo merecem ser tidos como totalmente culpados por isso, ainda que não devem deixar de serem responsabilizados também, ao menos em parte, por exemplo, como citado no início por mim, nem a Torá, nem a Bíblia, nem o Alcorão condenaram explicitamente a escravatura (infelizmente, até a reforçaram), assim como seu texto ajudou a postergar avanços quanto a liberdade e igualdade humana. 

Nossa ética sempre avança com a reflexão crítica e a experiência social acerca de como podemos viver melhor, harmonizando nossos interesses com os interesses dos outros, e as religiões tradicionais foram e são um modo de ajudar a chegar a isso, especialmente com a regra de ouro, que todas possuem e aparentemente sem influência recíproca (a regra de "Não fazer aos outros o que não aceitamos que eles nos façam" também está em muitas outras tradições espirituais e morais e em filosofias não religiosas), mas as religiões, incluindo, é preciso dizer, o cristianismo, não são sempre um bom modo de ajudar a fazer do mundo um lugar melhor (por exemplo, quando misturam ou confundem a ética com tradição religiosa e cultural, ou quando seguem, sem ponderações morais mais amplas e independentes, os mandamentos religiosos como ordens que não devem se questionadas, já que algo não pode se certo porque alguém, mesmo Deus, ordena, mas antes, é uma ordem, especialmente de Deus, se existir, porque é certo fazer aquilo, e há razões para ser certo, razÕes que estão nos fatos e no raciocínio moral). As religiões também não são o único modo de nos ajudar a viver melhor, a ética não religiosa, focada apenas nas consequências de nossas ações para o bem comum, sem preocupação com recompensas ou punições após a morte, é um modo aparentemente até mais eficaz de educação para se viver eticamente., no clima cultural atual. 

Concluindo, as religiões, importantes em si, devem ser sempre vistas com alguma desconfiança. Parafraseando Jesus, as religiões existem para o ser humano (e para a ética), e não os seres humanos (e a ética), para as religiões.


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