sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Curso de Bioética 2012 - Aula 2 - parte A


Aula 2 - Curso de Bioética – 2012

Roteiro/Resumo baseado no livro The Ethics of Killing, de Jeff McMahan (Oxford, OUP, 2002)

Prof. Alcino Eduardo Bonella

Esta aula se ocupa das concepções metafísica (somos ou temos, essencialmente, almas) e biológica (somos essencialmente organismos vivos) da identidade pessoal. Na primeira, ressalto a importância de estudarem com mais cuidado e detalhe a parte 2.3., consciência dividida, especialmente os experimentos de pensamento imaginados pelo autor.

A.                   Identidade Pessoal: concepção 1: Almas

Hilomorfismo [2.1. do livro]

McMahan sugeriu questionar, nas preliminares do capítulo I, se podemos mesmo pensar que já fomos um dia um embrião e um feto, assim como, se poderemos ainda existir um dia como um organismo em coma irreversível ou em estado de demência avançada. Mesmo se aceitássemos que um organismo começa na fecundação (concepção), poderia ainda ser o caso que não somos essencialmente um organismo.
O forte do argumento concepcionista é que o desenvolvimento biológico humano revela uma continuidade suave: após o nascimento não há um evento que marque o início de um novo indivíduo, mas o próprio nascimento, também, não parece relevante, não havendo um ponto entre a concepção e o nascimento que marque abruptamente o início de um novo indivíduo; o desenvolvimento biológico de um ser humano é um processo incremental.
Há apenas duas visões sobre nossa identidade pessoal que são compatíveis com a ideia de que começamos a existir imediatamente após a concepção, quando o que há de empiricamente detectável é o zigoto: a que diz que somos animais ou organismos biológicos (se tal célula é a primeira fase na existência de um organismo, e nós somos um organismo, faz sentido pensar que começamos na concepção) e a que diz que nós somos ou temos uma alma.
Na segunda visão, seja como um aspecto do nosso ser ou forma (que informa a sua matéria), seja como uma substância imaterial distinta do nosso corpo, a alma poderia começar a existir em associação com o zigoto imediatamente após a concepção. Muitos hoje ainda levam em conta essa segunda visão, incluindo médicos e legisladores, daí a justificativa para tratar criticamente dela.
Para McMahan a crença (popular) mais comum sobre a alma é de fato vazia (empty) porque nela tudo é possível, já que ela não é nem o corpo nem a mente (capacidade cerebral para a consciência), e assim, não tem características, e se ela não as tem, não há porque pensar que ela começa a existir na concepção, nem que ela seja essencial a este ou aquele indivíduo biológico, que pode possuir várias almas, assim como uma alma individual poderia habitar uma série de corpos diferentes.
Há uma visão mais elaborada filosoficamente sobre a alma, a da união substancial entre alma e corpo, de Aristóteles e Tomás de Aquino [e até onde eu saiba, a da Igreja Católica até hoje: o ser humano não é, ou tem, uma alma, ao lado do corpo, ele é uma substância em que alma e corpo estão unidos, e a vida após a morte implica na ressurreição do corpo]. Mas essa visão não é compatível com nosso início na concepção (não haveria nada das capacidades psicológicas especificamente humanas neste estágio), nem é esta visão, a mais plausível, acerca do que nós somos (o ser humano só possuirá claramente tais capacidades após o nascimento).
Nesta visão (hilomórfica) nós não somos almas, somos organismos com um princípio constituinte ou organizador da matéria: neste caso tal visão não é senão uma forma de materialismo polido. Uma razão para não ser assim diria que a autoconsciência e a vontade são imateriais, e são o que nos distinguem dos outros animais; mas, como a consciência simples dos animais pode ser explicada em termos físicos, não há porque pensar que a consciência humana, mais complexa, precise de explicação não-física.
Isso não implica que desde a concepção já há uma alma racional, pois o corpo só terá algo disso após a formação do cérebro, e de fato após o nascimento! (Tomás de Aquino defendeu a “dotação protelada” da alma, e, logo, do ser humano, no processo de gestação. Neste caso, a protelação parece coincidir com a formação do cérebro, mas podemos equivocadamente confundir capacidade de racionalidade com potencialidade para a racionalidade; a segunda não é sinal da presença da alma racional em ato). Talvez adotemos uma visão da alma como uma entidade ou substância, abandonando o hilomorfismo.

A Alma Cartesiana [2.2.]

Diferentemente do Hilomorfismo, pode-se pensar na alma como uma entidade não física: nós não temos uma alma, nós seríamos uma alma, e mesmo que sejamos corpo e alma, é a alma a nossa parte substancial. Isso (1) explicaria a consciência, os sentimentos e as percepções, supondo que não poderiam ser mera matéria. A alma (2) interagiria causalmente com o cérebro e o corpo, mas não dependeria dele para sua existência, nem da continuidade psicológica do indivíduo (por exemplo, que com mal de Alzeimer vai perdendo tal continuidade). Neste sentido tal concepção sobre a identidade pessoal (3) é não-reducionista: a existência contínua de uma pessoa não se reduz a nenhuma continuidade física ou psíquica. Há porém (4)  um critério para traçar a existência ou presença da alma: haver consciência ou capacidade para consciência. Sem ela não há mais alma ou ao menos não em associação com o corpo. Mas isso (6) dificulta a tese de que começamos a existir na concepção, pois não há nenhuma evidência de consciência neste ponto. (7) Dizer que ela está enclausurada e ainda se atualizará traz problemas para a visão do além da morte, já que assume a necessidade do cérebro e seu funcionamento para que a alma seja consciente. Tal visão sugere um ponto de descontinuidade no desenvolvimento biológico fetal humano: o aparecimento da consciência. A maioria hoje segue a concepção popular (alma sem características, presente desde a concepção), mas houve na tradição teológica expoentes desta visão descontínua (Tomás de Aquino, o mais famoso), e até o século 19 a Igreja, segundo McMahan, não condenava o aborto nos estágios iniciais de gestação com base nela.
Que a concepção cartesiana não é compatível com o início na fertilização é algo que a faz perder seu charme. Além disso, há objeções que parecem fatais: (a) a dependência, que os eventos mentais possuem, de estados do cérebro (o funcionamento mental é afetado pelo álcool e danos cerebrais físicos); (b) animais também pensam, sentem, e percebem, no sentido comum e prático desta comparação (Cartesianos assumiram que eles eram somente máquinas programadas por Deus); então, ou eles também tem ou são almas, ou a alma tem a ver com capacidades mais elevadas da cognição, o que deixaria fetos em estágio avançado, recém-nascidos, crianças, deficientes mentais, sem almas! (c) Outra objeção apela ao fenômeno dos gêmeos monozigotos, em torno de quatorze dias da gestação: se isso ocorre, o que ocorre com a alma? Ela se divide e então deixa de continuar existindo, o que seria trágico; ou ela não se divide e fica com um dos gêmeos, e o outro terá uma alma criada por Deus em um momento diferente da fertilização; ou será um autômato, como os animais cartesianos; ou Deus implantou duas almas desde o início, no zigoto que ira se dividir em dois (mas, se já não há evidência de que haja uma alma, dada a falta de evidência da consciência no zigoto, menos ainda para duas ou mais!). É melhor aceitar que a alma começa a existir quando emerge a consciência, que ocorre bem depois da fertilização, e isso resolveria esta objeção, mas há outros problemas com a divisão da consciência.

            Consciência dividida [2.3.]
            
           A operação da “comissurotomia hemisférica” e sua interpretação como produzindo potencialmente dois centros de consciência (divisão da consciência), também desafia a visão cartesiana da alma: a alma da pessoa que passa por tal operação poderia ter se dividido, mas resultando em duas outras almas (e eliminando a original, o que sugeriria assassinato!); ou a alma original se circunscreveria a um dos lados (o lado verbal), mas então uma nova alma foi criada para o outro lado; ou haveria sempre duas almas em cada cérebro, com o mesmo campo de consciência, rompido pela operação. Mas se existem dois centros separados de consciência e cada um experimenta estados conscientes não acessíveis ao outro, eles não podem ser partes da mesma alma.
            Este desafio fica mais agudo com os seguintes experimentos de pensamento: 1) o hipotético transplante de todo o corpo (o encéfalo recebe um outro corpo completo, exceto o encéfalo, de um gêmeo idêntico); 2) o hipotético transplante do tronco cerebral; 3) o hipotético transplante do cérebro (“cerebrum”) – comumente pensamos que alguém sobreviveria a tais transplantes. 4) perda de um hemisfério (um derrame causa a morte de um dos hemisférios cerebrais) em alguém com habilidades razoavelmente paritárias e simétricas em ambos os hemisférios; neste caso, ao menos, também pensamos que a pessoa sobreviveria, seria a mesma. 5) combinando 3 e 4: perda de um hemisfério de alguém que sofreu um acidente e perdeu o corpo, incluídos o tronco cerebral e um dos hemisférios, seguido de transplante (para o corpo do irmão gêmeo cujo cérebro foi totalmente destruído, mas não o corpo, incluído o tronco cerebral. Aqui parece que se poderia sobreviver também, dado o caso 4. 6) Hipotético Caso da Divisão de um em dois: trigêmeos idênticos envolvidos num acidente: um deles perde tudo exceto o cérebro; os outros dois mantém tudo, incluído o tronco encefálico mas tem todo seu cérebro destruído; cirurgiões transplantam um hemisfério do primeiro para um dos corpos, e outro, para outro dos corpos, e resultam disso duas pessoas, ambas contínuas, psicologicamente, consigo mesmas, e ambas acreditam ser elas mesmas; elas tem corpos quase indistintos.
           
            (6) produz problemas para todas as concepções da identidade pessoal, mas especialmente para a crença de que somos almas não materiais. (a) “uma pessoa com dois corpos”? Se se disser que há a pessoa original que sobrevive com uma mente que é dividida entre dois corpos, seremos incoerentes (lembre-se que a alma cartesiana é individualizada por referência a sua unidade de consciência, aos seus estados mentais próprios). (b) “almas clones”? Não dá para dizer que há duas pessoas diferentes que são idênticas com a primeira antes da cirurgia (isso implicaria que elas são idênticas entre si; e é a mesma visão prévia incoerente de uma mesma alma com uma consciência dividida em dois corpos). (c) “Uma alma em apenas um dos corpos”: a pessoa original sobrevive apenas em uma das duas pessoas resultantes. Mas de onde veio a outra alma? (d) “duas outras almas”: nenhuma das duas pessoas é idêntica à primeira; uma resposta ruim para a crença na alma (o cirurgião matou uma pessoa, e falta explicar como outras duas apareceram). (e) Apenas uma pessoa teria alma, a outra, ainda que viva, não teria consciência. Mas isso parece incompatível com o que sabemos dos casos de comissurotomia hemisférica (e a existência provável de dois centros distintos de consciência). A mente é potencialmente divisível de maneiras incompatíveis com a visão cartesiana de que somos almas imateriais, e o que sabemos cientificamente sobre a mente, e sua dependência do funcionamento cerebral, também parece incompatível com tal concepção.

* * *
(1) Como diferenciamos a chamada concepção popular da concepção cartesiana? Se é possível “qualquer coisa” nesta primeira, então, não podemos justificar racionalmente as religiões que usam essa noção?
(2) Por que ambas as concepções principais não implicam que aparecemos na concepção/fertilização? Há como defender o oposto, ou seja, que elas implicam isso, e McMahan está errado?
(3) Explique como o experimento de pensamento (6) desafia a concepção que acredita que nós somos almas imateriais. Há problemas nos experimentos de McMahan? Quais?
           

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