Aula 2 - Curso de Bioética – 2012
Roteiro/Resumo baseado no livro The Ethics of Killing, de Jeff McMahan (Oxford, OUP, 2002)
Prof. Alcino Eduardo Bonella
Esta aula se ocupa das concepções metafísica (somos ou
temos, essencialmente, almas) e biológica (somos essencialmente organismos vivos)
da identidade pessoal. Na primeira, ressalto a importância de estudarem com mais
cuidado e detalhe a parte 2.3., consciência dividida, especialmente os experimentos
de pensamento imaginados pelo autor.
A.
Identidade Pessoal: concepção 1: Almas
Hilomorfismo
[2.1.
do livro]
McMahan sugeriu questionar,
nas preliminares do capítulo I, se podemos mesmo pensar que já fomos um dia um
embrião e um feto, assim como, se poderemos ainda existir um dia como um
organismo em coma irreversível ou em estado de demência avançada. Mesmo se
aceitássemos que um organismo começa na fecundação (concepção), poderia ainda
ser o caso que não somos essencialmente um organismo.
O forte do argumento
concepcionista é que o desenvolvimento biológico humano revela uma continuidade
suave: após o nascimento não há um evento que marque o início de um novo
indivíduo, mas o próprio nascimento, também, não parece relevante, não havendo
um ponto entre a concepção e o nascimento que marque abruptamente o início de
um novo indivíduo; o desenvolvimento biológico de um ser humano é um processo
incremental.
Há apenas duas visões
sobre nossa identidade pessoal que são compatíveis com a ideia de que começamos
a existir imediatamente após a concepção, quando o que há de empiricamente
detectável é o zigoto: a que diz que somos animais ou organismos biológicos (se tal célula é a primeira fase na
existência de um organismo, e nós somos um organismo, faz sentido pensar que
começamos na concepção) e a que diz que nós somos ou temos uma alma.
Na segunda visão, seja
como um aspecto do nosso ser ou forma (que informa a sua matéria), seja como
uma substância imaterial distinta do nosso corpo, a alma poderia começar a
existir em associação com o zigoto imediatamente após a concepção. Muitos hoje
ainda levam em conta essa segunda visão, incluindo médicos e legisladores, daí
a justificativa para tratar criticamente dela.
Para McMahan a crença (popular)
mais comum sobre a alma é de fato vazia (empty)
porque nela tudo é possível, já que ela não é nem o corpo nem a mente (capacidade
cerebral para a consciência), e assim, não tem características, e se ela não as
tem, não há porque pensar que ela começa a existir na concepção, nem que ela
seja essencial a este ou aquele indivíduo biológico, que pode possuir várias
almas, assim como uma alma individual poderia habitar uma série de corpos
diferentes.
Há uma visão mais
elaborada filosoficamente sobre a alma, a da união substancial entre alma e
corpo, de Aristóteles e Tomás de Aquino [e até onde eu saiba, a da Igreja
Católica até hoje: o ser humano não é, ou tem, uma alma, ao lado do corpo, ele
é uma substância em que alma e corpo estão unidos, e a vida após a morte
implica na ressurreição do corpo]. Mas essa visão não é compatível com nosso
início na concepção (não haveria nada das capacidades psicológicas
especificamente humanas neste estágio), nem é esta visão, a mais plausível,
acerca do que nós somos (o ser humano só possuirá claramente tais capacidades
após o nascimento).
Nesta visão (hilomórfica) nós não somos almas, somos
organismos com um princípio constituinte ou organizador da matéria: neste caso tal
visão não é senão uma forma de materialismo polido. Uma razão para não ser
assim diria que a autoconsciência e a vontade são imateriais, e são o que nos
distinguem dos outros animais; mas, como a consciência simples dos animais pode
ser explicada em termos físicos, não há porque pensar que a consciência humana,
mais complexa, precise de explicação não-física.
Isso não implica que
desde a concepção já há uma alma racional, pois o corpo só terá algo disso após
a formação do cérebro, e de fato após o nascimento! (Tomás de Aquino defendeu a
“dotação protelada” da alma, e, logo, do ser humano, no processo de gestação.
Neste caso, a protelação parece coincidir com a formação do cérebro, mas podemos
equivocadamente confundir capacidade
de racionalidade com potencialidade
para a racionalidade; a segunda não é sinal da presença da alma racional em ato). Talvez adotemos uma visão da
alma como uma entidade ou substância, abandonando o hilomorfismo.
A
Alma Cartesiana [2.2.]
Diferentemente do
Hilomorfismo, pode-se pensar na alma como uma entidade não física: nós não
temos uma alma, nós seríamos uma alma, e mesmo que sejamos corpo e alma, é a alma a nossa
parte substancial. Isso (1) explicaria a consciência, os sentimentos e as
percepções, supondo que não poderiam ser mera matéria. A alma (2) interagiria
causalmente com o cérebro e o corpo, mas não dependeria dele para sua
existência, nem da continuidade psicológica do indivíduo (por exemplo, que com
mal de Alzeimer vai perdendo tal continuidade). Neste sentido tal concepção
sobre a identidade pessoal (3) é não-reducionista: a existência contínua de uma
pessoa não se reduz a nenhuma continuidade física ou psíquica. Há porém (4) um critério para traçar a existência ou
presença da alma: haver consciência ou capacidade para consciência. Sem ela não
há mais alma ou ao menos não em associação com o corpo. Mas isso (6) dificulta
a tese de que começamos a existir na concepção, pois não há nenhuma evidência
de consciência neste ponto. (7) Dizer que ela está enclausurada e ainda se
atualizará traz problemas para a visão do além da morte, já que assume a
necessidade do cérebro e seu funcionamento para que a alma seja consciente. Tal
visão sugere um ponto de descontinuidade no desenvolvimento biológico fetal
humano: o aparecimento da consciência. A maioria hoje segue a concepção popular
(alma sem características, presente desde a concepção), mas houve na tradição
teológica expoentes desta visão descontínua (Tomás de Aquino, o mais famoso), e
até o século 19 a Igreja, segundo McMahan, não condenava o aborto nos estágios
iniciais de gestação com base nela.
Que a concepção
cartesiana não é compatível com o início na fertilização é algo que a faz
perder seu charme. Além disso, há objeções que parecem fatais: (a) a
dependência, que os eventos mentais possuem, de estados do cérebro (o
funcionamento mental é afetado pelo álcool e danos cerebrais físicos); (b)
animais também pensam, sentem, e percebem, no sentido comum e prático desta
comparação (Cartesianos assumiram que eles eram somente máquinas programadas
por Deus); então, ou eles também tem ou são almas, ou a alma tem a ver com
capacidades mais elevadas da cognição, o que deixaria fetos em estágio
avançado, recém-nascidos, crianças, deficientes mentais, sem almas! (c) Outra
objeção apela ao fenômeno dos gêmeos monozigotos, em torno de quatorze dias da gestação:
se isso ocorre, o que ocorre com a alma? Ela se divide e então deixa de
continuar existindo, o que seria trágico; ou ela não se divide e fica com um
dos gêmeos, e o outro terá uma alma criada por Deus em um momento diferente da
fertilização; ou será um autômato, como os animais cartesianos; ou Deus
implantou duas almas desde o início, no zigoto que ira se dividir em dois (mas,
se já não há evidência de que haja uma alma, dada a falta de evidência da
consciência no zigoto, menos ainda para duas ou mais!). É melhor aceitar que a
alma começa a existir quando emerge a consciência, que ocorre bem depois da
fertilização, e isso resolveria esta objeção,
mas há outros problemas com a divisão da consciência.
Consciência dividida [2.3.]
A
operação da “comissurotomia hemisférica” e sua interpretação como produzindo
potencialmente dois centros de consciência (divisão da consciência), também
desafia a visão cartesiana da alma: a alma da pessoa que passa por tal operação
poderia ter se dividido, mas resultando em duas outras almas (e eliminando a
original, o que sugeriria assassinato!); ou a alma original se circunscreveria
a um dos lados (o lado verbal), mas então uma nova alma foi criada para o outro
lado; ou haveria sempre duas almas em cada cérebro, com o mesmo campo de
consciência, rompido pela operação. Mas se existem dois centros separados de
consciência e cada um experimenta estados conscientes não acessíveis ao outro,
eles não podem ser partes da mesma alma.
Este
desafio fica mais agudo com os seguintes experimentos de pensamento: 1) o hipotético transplante de todo o corpo (o encéfalo recebe um outro corpo completo, exceto o encéfalo, de
um gêmeo idêntico); 2) o hipotético
transplante do tronco cerebral; 3) o
hipotético transplante do cérebro (“cerebrum”) – comumente pensamos que alguém
sobreviveria a tais transplantes. 4)
perda de um hemisfério (um derrame causa a morte de um dos hemisférios cerebrais) em
alguém com habilidades razoavelmente paritárias e simétricas em ambos os
hemisférios; neste caso, ao menos, também pensamos que a pessoa sobreviveria, seria
a mesma. 5) combinando 3 e 4: perda de um hemisfério de alguém que sofreu um
acidente e perdeu o corpo, incluídos o tronco cerebral e um dos hemisférios, seguido
de transplante (para o corpo do irmão gêmeo cujo cérebro foi totalmente destruído,
mas não o corpo, incluído o tronco cerebral. Aqui parece que se poderia
sobreviver também, dado o caso 4. 6) Hipotético
Caso da Divisão de um em dois: trigêmeos
idênticos envolvidos num acidente: um deles perde tudo exceto o cérebro;
os outros dois mantém tudo, incluído o tronco encefálico mas tem todo seu cérebro destruído; cirurgiões transplantam um hemisfério do primeiro para um
dos corpos, e outro, para outro dos corpos, e resultam disso duas pessoas, ambas contínuas, psicologicamente,
consigo mesmas, e ambas acreditam ser elas mesmas; elas tem corpos quase
indistintos.
(6)
produz problemas para todas as concepções da identidade pessoal, mas
especialmente para a crença de que somos almas não materiais. (a) “uma pessoa
com dois corpos”? Se se disser que há a pessoa original que sobrevive com uma
mente que é dividida entre dois corpos, seremos incoerentes (lembre-se que a alma cartesiana é individualizada por
referência a sua unidade de consciência, aos seus estados mentais próprios). (b)
“almas clones”? Não dá para dizer que há duas pessoas diferentes que são
idênticas com a primeira antes da cirurgia (isso implicaria que elas são
idênticas entre si; e é a mesma visão prévia incoerente de uma mesma alma com uma
consciência dividida em dois corpos). (c) “Uma alma em apenas um dos corpos”: a pessoa original sobrevive apenas em uma das duas
pessoas resultantes. Mas de onde veio a outra alma? (d) “duas outras almas”:
nenhuma das duas pessoas é idêntica à primeira; uma resposta ruim para a crença
na alma (o cirurgião matou uma pessoa, e falta explicar como outras duas
apareceram). (e) Apenas uma pessoa teria alma, a outra, ainda que viva, não
teria consciência. Mas isso parece incompatível com o que sabemos dos casos de
comissurotomia hemisférica (e a existência provável de dois centros distintos
de consciência). A mente é potencialmente divisível de maneiras incompatíveis com
a visão cartesiana de que somos almas imateriais, e o que sabemos cientificamente
sobre a mente, e sua dependência do funcionamento cerebral, também parece incompatível
com tal concepção.
* * *
(1) Como diferenciamos a chamada concepção
popular da concepção cartesiana? Se é possível “qualquer coisa” nesta primeira,
então, não podemos justificar racionalmente as religiões que usam essa noção?
(2) Por que ambas as concepções principais
não implicam que aparecemos na concepção/fertilização? Há como defender o oposto,
ou seja, que elas implicam isso, e McMahan está errado?
(3) Explique como o experimento de pensamento
(6) desafia a concepção que acredita que nós somos almas imateriais. Há problemas
nos experimentos de McMahan? Quais?
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