Texto de uma palestra proferida para alunos dos
Cursos de Medicina e de Filosofia, da UFU
Cursos de Medicina e de Filosofia, da UFU
Prof.
Alcino Eduardo Bonella (UFU/CNPq)
* para meus amigos: Rubens, que me faz sempre lembrar de Sócrates e Platão, Carlos,
que me faz sempre lembrar da importância da educação dos mais jovens e da integridade médica, e Leonardo, que melhor que amigo é um verdadeiro irmão na sinceridade e apoio.
O Filme Match Point, de
Wood Allen, trata de escolhas e de sorte. A frase inicial diz que “o homem que
prefere ter sorte do quê ser bom entendeu o sentido da vida”, porque a sorte moldaria
nossas vidas, e com um lapso de sorte, “você ganha”, com um de azar, “você
perde”. A última frase, sobre a criança que acaba de vir ao mundo diz: “Não me
importa se será boa: espero que tenha
muita sorte”.
Sócrates, na República,
discute sobre a sorte do pastor Gyges, que encontrou um anel da invisibilidade,
e passou a obter o que deseja, mas para isso “seduziu a rainha, matou o rei,
conspirou politicamente”, até ser o novo rei. A discussão surgiu porque era
opinião corrente que qualquer um faria isso se tivesse um tal anel, ou seja,
faria desdém de normas morais; e que seria racional fazê-lo e insensato fazer
de outro modo.
Pergunta: como encontrar razões para não fazer a coisa
errada, mesmo se sabemos que nunca seremos apanhados, seja por causa de um hipotético
anel da invisibilidade, seja porque teríamos muita sorte ?
Sócrates discordou que qualquer um faria o errado: uma pessoa virtuosa não o
faria. Também discordou que seria sensato fazer coisas erradas, mesmo que não
se fosse apanhado. Por que? Sócrates (ou Platão) alegou que quem não age
corretamente, nunca será realmente feliz, e nunca encontrará harmonia no que
faz. Mas, será mesmo? O filme de Wood Allen sugere que
resposta?
Os filósofos em geral sugerem quatro razões para não fazermos
coisas erradas e não vivermos de modo vicioso, mesmo se temos um suposto anel
de Gyges, ou se podemos supostamente, abusar da sorte: (1) não existem anéis da
invisibilidade nem sorte exagerada: a suposição é insensata; (2) o erro (como o crime), normalmente (quase sempre), não
compensa, e a mentira tem pernas curtas: no mundo como ele é de fato, há sempre
muito mais chances de azar do que sorte se fazemos o que é errado e se vivemos “de
fachada”; (3) o erro moral (e o crime) geram infelicidade, ou, ao menos, menos
felicidade do que o oposto, uma vida virtuosa; (4) que isso não é correto: que
isso não é justo e bom para com as vítimas, e ponto final.
A resposta mais convincente ou completa, logicamente, é
(4), mas é a menos apelativa ou a menos motivadora para pessoas que duvidam
exatamente se querem mesmo ser virtuosas e fazer a coisa certa sempre. Já (1),
(2) e (3), pressupondo que temos certa inclinação mais forte para nos
favorecer, são bastante mais razoáveis subjetivamente, pois aceitam o
pressuposto do nosso autointeresse, mas alertam que ele (o autointeresse) corre
risco (supondo que (1), (2) e (3) são verdadeiras). Mas (1), (2) e (3) não
parecem muito convincentes nem completas, pois nem sempre parecem ser o caso, pode
valer a pena correr o risco, sempre temos essa escolha entre as possibilidades.
As três primeiras repostas em suma dizem que é imprudente ser imoral. Na vida social
temos de conviver mutuamente com os outros, temos limitações que sugerem
cooperar e dizer a verdade, para que todos tenhamos benefícios, sempre haverá algumas
normas e expectativas, e também algum controle social. Assim, por prudência (em
favor do próprio interesse), é bom ao menos parecer
uma pessoa confiável, e uma pessoa moral. Mas
o melhor modo para parecer alguém virtuoso e bom, é ser realmente alguém virtuoso
e bom; o melhor jeito de não errar e de não ser pego nunca fazendo o errado,
é não tentar errar e não tentar fazer o que é errado. E o modo mais fácil e
duradouro de desenvolver uma vida assim é ter hábitos, de pensamento e de ação,
que não usam duplo padrão, e o padrão que resta então é o padrão moral.
Um padrão moral é aquele que nos faz pensar na coisa certa independentemente
das vantagens para nós em cada caso, e nos faz agir bem como que por impulso, e
não por cálculos. Mas se isso der certo, a pessoa irá usar a razão (4), e não
precisará das razões 1 a 3.
Já a razão (3) depende de (4): quem não tem consciência
moral não sente (muito) remorso ou (muita) culpa pelo que faz, e pode tentar
ser feliz fazendo a coisa errada e vivendo de modo vicioso, ainda que de modo
camuflado. Como vimos, Sócrates acreditava que não se pode ser realmente feliz
com escolhas que fazem o mal aos outros e precisam de duplo padrão (duas caras).
Pode ser. Pode não ser. E pode depender da psicologia de cada um: mas a maioria
de nós talvez não seja tão egoísta a ponto de não ter remorso e culpa ao
prejudicar os outros; e a maioria de nós não será provavelmente psicopata.
Além disso: é difícil ter duas caras o tempo todo; é
provável que toda sociedade tenha de pregar que as pessoas não façam o mal aos
outros apenas para obter vantagens pessoais, ou seja, será difícil assumir
publicamente a cara de mau (e de pau); logo, ou se terá duas caras, ou se
adotará apenas a de bom. Mas você pode ponderar quanto o apelo à sua própria felicidade,
mas com a lembrança séria de (2) – de que o crime em geral não compensa e de
que a mentira tem pernas curtas - restringe ou não os seus impulsos mais
egoístas.
A resposta completa sobre porque não usar o supostos anéis
da invisibilidade e nem abusar da sorte para se obter vantagens pessoais por
meios ilícitos é: anéis e sorte deste tipo não existem; se existem, em geral,
nós não nos saímos muito bem quando confiamos neles (e os utilizamos); os
riscos são altos (reputação, carreira, liberdade); provavelmente nós não nos
sentiremos bem, ou nos sentiremos pior do que quando optamos pelo bem (então,
porque arriscar?); e, simplesmente, porque
é a coisa certa (por exemplo, por que a vítima vai perder a vida, ou bens,
ou será enganada, coisas que não queremos
que façam conosco; coisas que geram prejuízos sociais; coisas que são
direitos das vítimas).
A bola de tênis que bate na rede no início do filme, e o
lançamento do anel da vítima no final, sugerem, talvez equivocadamente, que (1)
e (2) podem não ser o caso. O sofrimento do protagonista principal (coitado!) sugere
ambiguamente que algo de (3) é o caso, mas também sugere que não é: ele parece
conviver razoavelmente bem com a culpa, pode ser que com o tempo, tudo se
“cicatrize”. O diálogo irreal com as duas vítimas revela claramente o que
significa a resposta (4): não é preciso ser expert
em moral para sentir repulsa pela justificativa do “bem maior”, dada pelo algoz,
e sentir isso em parte pela simples falsidade do argumento: “bem maior” para ele, e bem bastante menor se
tomamos os três (ou quatro?) conjuntamente: de um lado a perda da vida de 3
seres humanos, além de uma vida de mentiras e farsas; do outro, o conforto material
pessoal. Sem comparação, certo? Ou você vacilou um pouco nisso?
Penso que (4), no filme e na vida real, é quase sempre o
caso, e não é difícil de ser captado, ainda que seja preciso o mínimo de atenção
para isso, e tal atenção (à dimensão moral da vida) não é inata ou automática,
e mesmo depois de aprendida, depende das experiências de vida de cada um. Penso,
porém, que (1) e (2), no filme, são o inverso do que ocorre na vida real:
quanto você obtém coisas por abusar da sorte ou quanto você realmente acha que
as pessoas em geral obtém por abusar da sorte, fazendo coisas erradas (e não só
coisas intencionalmente más, mas pequenos erros de imprudência, negligência e
imperícia para com a vida e os bens pessoais dos outros), na vida real, se
comparado com a sorte do protagonista do filme?
Você realmente acha que um crime – pequeno ou grande - pode
ser facilmente despistado? Já sobre (3), penso que é, na vida real, realmente
uma incógnita. Ao menos para a média de nós, qual seria o nosso futuro
psicológico, fôssemos o protagonista filme? Igual? Pior: ou seja, com mais
tormento? Melhor: ou seja, com mais benefícios e menos remorso e culpa?
Curiosamente, ao contrário de Gyges (o pastor que acha um
anel da invisibilidade), ou do professor de tênis do filme, Sócrates, não teve muita
sorte: foi acusado de corromper a juventude, o que era mentira, e foi condenado
à morte, o que era um completo disparate, além de assustador, para mim (para ele
nem tanto). Conta-se que seus amigos arrumaram um jeito para ele fugir antes da
aplicação da sentença, mas na hora “h”, a coisa desandou. Sócrates não quis
fugir porque pensou que não era a coisa certa a se fazer e porque não seria
feliz. Para saber disso ele: (a) alegou que não devia se guiar pelas emoções,
mas pela razão, o que era um jeito de dizer que uma ação não era certa apenas
porque ele achava que era certa (o certo não era relativo à sua opinião
pessoal); (b) que não devia se guiar pela voz da maioria, ou seja, que uma ação
não era certa apenas porque a opinião da sua sociedade dizia que era (o certo
não era relativo à opinião da sociedade); (c) que não devia olhar para os
benefícios e prejuízos para si mesmo, mas apenas para a natureza do ato.
Vai sem dizer que a coisa certa dependia então do que
ocorreria especialmente às vítimas, mas também à sociedade como um todo. Por
exemplo, para Sócrates, fugir naquelas circunstâncias não era a coisa certa
porque era contra a lei, contra as promessas tácitas que ele havia feito em
público, contra a autoridade constituída. (Politicamente, fugir daria certa
razão aos que o condenaram, enquanto morrer desmoralizaria todo o processo). Um
ponto central também era que fugir não valia a pena para ele (não lhe faria
feliz). Naquela altura da vida valia mais morrer por uma boa causa, do que
viver para cuidar de seus interesses menores. E então: Sócrates ou Gyges? Ou Chris
Wilton? Façam suas escolhas. E boa sorte.
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