Kant e o Utilitarismo
Prof. Alcino Eduardo Bonella (UFU/CNPq)
Curso
de Ética 1
(HARE,
R.M. “Kant poderia ter sido um utilitarista?”. In: Ética. São Paulo, Martins
Fontes, 2003)
Esta é uma interpretação geralmente assumida
por filósofos intuicionistas, porém, por outro lado, Kant explicitamente não foi intuicionista, e
sim, um prescritivista. Assim, podemos arriscar encontrar apoio para uma resposta
diferente à pergunta inicial, uma que resgate Kant dos intuicionistas, já que
Kant foi um deontologista racionalista, e já que sua racionalidade moral tem
aspectos utilitaristas.Vejamos.
8.2 Para Kant, o nosso dever
é resultado da aplicação de um Imperativo Categórico, que é um tipo de
raciocínio moral sofisticado, que interpreta a regra de ouro cristã em termos
lógicos. Uma versão deste imperativo é o princípio do respeito pela humanidade
como um fim-em-si mesma, e nunca como mero meio para qualquer uso: o que
concorda com esta ideia é moral (é exigido dos seres de razão, ou ao menos é permitido),
o que não concorda, não é permitido, e exige que nos abstenhamos deste tipo de ação.
Mas o que exatamente Kant quer dizer com esta ideia de tratar a humanidade
como fim e não como mero meio? Há ao menos duas interpretações: uma utilitarista
e uma não-utilitarista (chamada de perfeccionista).
A primeira entende que, pensar se eu ajo de acordo a ideia da humanidade como
fim em si, implica em pensar se o fim da minha
ação (por exemplo, de enganar alguém ou de não socorrer na necessidade)
pode ser compartilhado pela vítima desta
ação: se a humanidade é tratada como fim, toda
ela pode compartilhar o fim ou fins da minha
ação, e eu também, como ser racional humano (como agente e paciente da ação). Isso é,
para Hare, equivalente ao utilitarismo, que implica também em pensar sobre todos os fins (= preferências)
em pé de igualdade, e dar-lhes peso igual.
8.3 A interpretação não utilitarista dá um significado sobre-humano ao fim em si. Por exemplo, mesmo para comigo, devo tratar a humanidade em minha pessoa como um fim em si, e não posso então, por exemplo, me suicidar. Veja que ele não diz que não posso por causa de terceiros, ou por causa da falta de racionalidade em alguns tipos de suicídio. Logo, deve ser porque não se poderia compartilhar o fim dessa ação como vítima. Mas, porque exatamente? Porque não poderia haver compartilhamento do fim entre eu, querendo um certo fim, e “eu mesmo”, no dever para comigo
mesmo. O suicídio e a “lotofagia” são, para Kant. infrações do dever para consigo mesmo,
eles usariam a humanidade apenas como um meio, e não como fim.
Hare sugere que há aqui outro sentido de “usar como um mero meio” (no caso, usar-se como um mero meio). Eu, mesmo possuindo tais fins, como aliviar o próprio sofrimento ou gastar o tempo com prazeres, estaria usando a humanidade como
simples meio: mas isto é um equívoco porque a humanidade neste caso sou eu mesmo! Esta é a versão perfeccionista. Como Tegendhat, Hare se pergunta se “Eu
mesmo”, nesta interpretação, não estaria substituindo “Deus”, e sua pretensa proibição de matar-me ou apreciar a vida sem trabalhar. Ou quem sabe, se não estaria substituindo a “natureza” e seu suposto propósito de que eu não faça essas coisas. (Essa era o tipo de biologia do século 18: a natureza possuiria fins próprios que
explicavam os fatos naturais).
8.4 Outra formulação do imperativo
categórico é a da lei universal: aja como se sua máxima de ação (seu princípio subjetivo) pudesse ser querida ao mesmo tempo como uma lei universal. Isso significa que
ela é universalizável: não vale só neste caso e não vale só para mim. Mas isso significa
também, para Hare: que temos de querê-la em qualquer outra situação semelhante,
o que inclui todas as situações em que estou nas posições dos outros afetados;
e isto por sua vez significa que tenho de adotar aquela regra que faz o melhor
por todos os papéis, pois essa poderia ser querida por mim, mas também por mim na pele dos outros afetados, e isso equivaleria ao utilitarismo (que busca maximizar a felicidade dos afetados). Novamente, os exemplo 2
e 4 de Kant podem ser bem interpretados assim, e tal raciocínio utilitarista conduz ao mesmo resultado a que Kant chega,
mas não os exemplo 1 e 3.
8.5 Há uma tensão entre o aspecto
utilitarista (o amor prático pelas
pessoas expresso em querer a satisfação dos fins das pessoas envolvidas), e que dá conteúdo ao dever formal (a forma da universalidade da máxima) para com os outros, ou, aos deveres sociais, e o aspecto não-utilitarista (a perfeição de si próprio) que dá conteúdo ao dever para consigo. Ou
tal dever é incompatível com a autonomia, ou podemos interpretar tal dever de
perfeição como simples boa vontade, a perfeição é só a prática da moralidade e
não outro conteúdo moral material, ao lado e em oposição à busca da felicidade
dos outros.
8.6 Objeção 1: argumento do “enfraquecimento dos nossos deveres” (com os dois níveis do raciocínio moral)
8.7 Objeção 2: “Kant exclui
tudo que seja empírico do conceito de dever”. Ele até escreve isso!
8.9 Objeção 3: “Kant não pode
ter sido um consequencialista”. Não. Claro que não. Mas então ele seria um intuicionista, já que sem olhar para as consequências, como saberíamos o que deve ser feito?
* * * * * *
Questões:
1 – Qual a resposta à
pergunta do capítulo, e por quais razões?
2 – Qual é a interpretação
utilitarista da segunda versão do imperativo categórico, do respeito pela
humanidade como fim?
3 – Tente reconstruir a dedução do princípio de utilidade (a maximização do bem estar dos afetados), feita por Hare, a
partir do conceito simples de dever.
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