Hand-Out para parte do capitulo 3 de McMahan (A ética do matar), Curso de Bioética
Pertencer
à espécie Humana
O antropocentrismo procura manter as crenças
tradicionais a respeito do tratamento de seres humanos com sérias deficiências
mentais e das práticas generalizadas que envolvem a utilização e a morte de
animais.
O autor considera que o antropocentrismo
combina elementos do que ele denominou igualitarismo radical e do elitismo
consistente e que são imcompatíveis com a abordagem do interesse temporalizado.
Trata animais de uma maneira menos boa e
seres humanos com graves deficiências mentais com mais solicitude em relação
aos interesses temporalizados tanto de uns quanto de outros.
O antropocentrismo é uma postura que coincide
com o senso comum e é possível investigar se é uma postura defensável ou não.
Para ser defensável o antropocentrismo deve apontar diferenças moralmente
significativas entre animais e seres humanos com capacidades e potenciais
psicológicos comparáveis. E não simplesmente apontar tais diferenças, mas
demonstrar que elas são suficientemente relevantes para justificar a enorme
diferença de tratamento dispensado a ambos.
Essa é a tese do individualismo moral
defendida pelo filósofo americano James Rachels que o define como:
“Individuals are to
be treated in
the same way
unless there is a
relevant difference between
them that justifies
a difference in treatment.”
As estratégias de defesa do antropocentrismo são
baseadas na crença de que existe entre seres humanos e animais não-humanos uma
diferença intrínseca. E quais poderiam ser?
1 - Existência da
alma.
Seres humanos são essencialmente
almas ou, pelo menos, dotados de uma enquanto animais não tem almas.
O autor acredita ter demonstrado no
capítulo 1 que almas não existem.
Entretanto, mesmo se almas
existissem e apenas seres humanos fossem dotados de tal atributo, não se
seguiria daí que humanos deveriam, por esse motivo, ostentar um estatuto moral
privilegiado em relação aos demais animais. Pelo contrário. Se seres humanos
são dotados de uma alma que lhes garanta uma vida imortal e os animais não, parece lógico que matar um animal seja
mais reprovável pois o privaria de qualquer bem futuro enquanto um ser humano
ao morrer apenas transitaria de um
estado de vida para outro.
A não ser que matar seres humanos
fosse ofender a deus. McMahan pensa que o fato de deus perdoar apoie essa
vertente pois seria incongruente pensar que deus perdoasse ofensas não
dirigidas a ele. McMahan não questiona, mas aqui é forçoso perguntar porque
deus se sentiria ofendido por qualquer mal causado àquela parte de sua criação
que ele resolveu dotar de alma? Que tipo de valor seria adicionado a um ser
vivo quando lhe fosse atribuído uma alma capaz de atrair cuidado tão
excepcional de seu criador? Talvez deus devesse ter dotado todos os seres de
almas ou ter criado apenas almas.
2 - Somos humanos,
ponto.
Essa estratégia se baseia na
inviolabilidade e sacralidade da vida humana. O fato de um indivíduo pertencer
à espécie humana torna sagrado e inviolável o valor de sua vida, mesmo que ele
seja um embrião defeituoso cujo potencial seria transformar-se em um bebê
anencéfalo. Valor sagrado de uma maneira que a vida de nenhum outro animal
teria, fosse um feto ou um adulto.
E essa ideia seria defensável? De
onde emanaria o valor sagrado da vida de fetos anencéfalos? Não seria de seus
atributos psicológicos, pois esses fetos não teriam nenhum. Não parece ser
físico também, pois um embrião recém implantado é física e funcionalmente menos
complexo que um inseto. Parece que a superioridade atribuída a um indivíduo da
espécie humana, seja normal ou com sérias deficiências, apoia-se no fato de
simplesmente ser um organismo daquela espécie.
E essa parece ser uma condição
suficiente e não necessária para que a vida de algum indivíduo possa ser
considerada sagrada e inviolável. O guarda chuva da santidade e da
inviolabilidade acomodaria assim um indivíduo não humano que fosse dotado de
capacidades psicológicas comparáveis , por exemplo, a uma criança humana de 10. Haveria, então,
duas condições suficientes (pertencer à espécie humana e ter certas capacidades
mentais ou psicológicas) e nenhuma delas seria necessária para sacralidade e
inviolabilidade da vida. Um chimpanzé com o córtex cerebral modificado
satisfaria uma dessas condições enquanto um bebê anencéfalo satisfaria a
outra. Uma criança de 10 anos satisfaria
as duas. McMahan advoga que os fundamentos de inviolabilidade e sacralidade não
podem ser aditivos, logo uma criança normal de 10 anos, embora satisfaça ambas
as condições, não pode ter seu estatuto moral superior quando comparado a um
chimpanzé modificado.
McMahan se pergunta que razões,
então, haveria para que o pertencimento a uma determinada espécie fosse
suficiente para gerar um estatuto moral superior ao pertencimento a uma outra
espécie qualquer?
O filósofo parte do pressuposto que
o conceito de espécie não passa de uma estratégia utilizada em biologia para
classificar os seres vivos e isso, por si só, já comprometeria a intenção de
atribuir significado moral ao fato de um indivíduo pertencer a certa espécie. Além
disso, a crença do filósofo em que não seríamos essencialmente organismos exige
que ele defenda que pertencer a uma espécie é uma propriedade atribuível apenas
a nossos organismos e atribuída a nós mesmos apenas por extensão. Aqui ele diz
que embora não sejamos exatamente membros de uma espécie (porque nossos
organismos é que são), ainda podemos afirmar que somos membros da espécie Homo Sapiens. (O dualismo, às vezes,
exige certos malabarismos teóricos).
McMahan especula se haveria algumas
características essenciais que unissem os membros de uma espécie.
Essas características podem ser
fenotípicas? Contra essa possibilidade, o filósofo argumenta que existem
complicadores sérios como a existência de espécies politípicas e espécies
gêmeas. As primeiras possuem fenótipos muito diferentes embora possam acasalar
e gerar prole fértil e a segunda cujos fenótipos são, muitas vezes, indistinguíveis
embora não possam se acasalar e gerar prole fértil.
Seriam, então, características
genotípicas? Mas, será que a configuração de genes que compõe o genoma de um
indivíduo poderia ter qualquer significado moral? Contra essa possibilidade, o
filósofo recorre a uma experiência de pensamento que é a possiblidade da
hibridização genética. Partindo de experiências reais na produção de animais
transgênicos McMahan supõe a
possibilidade de criar um ser que seja em parte humano e em parte chimpanzé. E pergunta
em que ponto do espectro gênico um indivíduo poderia ser considerado humano e,
portanto, ser portador de uma vida sagrada e inviolável ou ser considerado um
chimpanzé e ser portador de uma vida moralmente tão inferior. Essas
experiências poderiam gerar um chimpanzé com um córtex cerebral humano ou
poderiam gerar um ser humano com o córtex de chimpanzé, o que causaria sérias
dificuldades em determinar qual seria dotado de uma vida sagrada. À estratégia
que afirma que espécie se define pela possibilidade de acasalamento o autor
responde com a existência de espécies em anel.
Entretanto, McMahan advoga que
qualquer diferença biológica é moralmente insignificante como, por exemplo,
diferenças de sexo e raça. E a discriminação de um indivíduo tendo como alvo a
espécie a que pertence pode ser denominada de especismo. E mesmo que as
diferenças específicas estejam fortemente correlacionadas com diferenças que
têm significado moral, tais correlações
não são invariantes. Em seres humanos com graves deficiências mentais essa
correlação é fraca.
Outra estratégia de justificar a
diferença de tratamento dispensado a um ser humano e um animal não humano, é
levar em conta não as capacidades individuais, mas as capacidades típicas dos
seres pertencentes à espécie da qual faz parte determinado indivíduo. (Essa é
claramente uma estratégia quase que universalmente aceita e contrasta
veementemente com a perspectiva do “Individualismo Moral” defendida por Mc
Mahan).
Dois autores são citados como
defensores dessa perspectiva: Finnis e Scanlon. O primeiro considera que
devamos agir para com indivíduos com referência às características que são a
norma da espécie. No caso de seres humanos a norma da espécie seria a sua
natureza racional. Scanlon, por seu lado, afirma que uma parte da moral diz
respeito aos deveres que temos em relação a outros seres e que tais seres para
com quem temos tais deveres são aqueles “[...] em relação aos quais temos boas
razões para desejar que nossas razões sejam justificáveis”. Esses seriam os
seres que poderíamos tratar de forma certa ou errada. E para Scanlon, os seres
em relação aos quais podemos agir de forma errada (ou certa) incluiria “[...]
pelo menos , todos os seres que sejam capazes de adotar atitudes sensíveis ao
juízo”. Isso incluiria os seres humanos
com graves deficiências mentais, já que temos que adotar atitudes para com eles
que respeitem princípios que eles não poderiam (razoavelmente) recusar, mesmo
que sejam incapazes de fazer tal avaliação. Em relação aos animais, entretanto,
só caberia apresentar justificativas a possíveis gestores que, não por acaso,
seriam humanos. Isso é estranho pois seres humanos com capacidades mentais
comparáveis a alguns animais não necessitariam gestores pois eles pertencem a
nossa própria espécie.
A visão de Scanlon é um especismo um
pouco mais fraco, embora não deixe de sê-lo e inscreve-se no âmbito daquela
perspectiva que julga o estatuto moral de um indivíduo pelo estatuto da espécie
e se tal indivíduo não é dotado daquelas habilidades especiais que caracterizam
sua espécie ele deve ser considerado um desafortunado. Um indivíduo de outra
espécie com habilidades comparáveis não seria, entretanto, considerado
desafortunado se tais “deficiências” fosse a norma da espécie.
Aqui também o que prevalece é a
justificação de certo estatuto moral baseado no que somos essencialmente. E se
o que somos essencialmente é determinado pelo tipo de coisa que somos, e o tipo
de coisa que somos é determinado pela espécie a que pertencemos, logo somos
essencialmente o que é a nossa espécie.
McMahan acredita que já refutou essa
possibilidade. Mas, considera que mesmo que isso fosse verdade, mesmo que nossa
essência residisse no fato de que pertencemos à determinada espécie, não se segue
daí que devamos ter um estatuto moral superior. Porque as condições necessárias
para que sejamos considerados humanos não têm em si qualquer sentido moral.
Para McMahan, que crê que não somos organismos, essa correlação entre espécie e
estatuto moral é ainda mais indefensável.
Em resumo, McMahan crê que o
tratamento especial dispensado a seres pertencentes à espécie humana não se
justifica nem biológica, nem metafísica e nem moralmente.
Muito interessante esse texto. A minha questão é: Porque pensar em respeitar a vida, seja ela de qualquer espécie, só havendo o comprovação científica de que há a dor, se sabemos que esta (a dor) é subjetiva. Entendo que a vida deve ser vivida, naturalmente, enquanto for possível, dos humanos e dos não humanos.
ResponderExcluirE não estou me respaldando em questões religiosas, mas na observação da vida enquanto vida. E entendo assim como respeito a mesma.
ResponderExcluirMargarida concordo com você e o texto vai na mesma direção não? Ele critica o antropocentrismo, que é "especista", ou seja, tem preconceito e faz discriminação com base no mero pertencimento a uma espécie. Isso não tem sustentação, é o que tenta defender o texto.
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