Vida,
Morte e Identidade Humana.
Vamos tratar nessa aula
de alguns aspectos acerca da identidade pessoal, e para isso nos basearemos em
algumas teorias filosóficas recentes (J. McMahan e M. Tooley). Examinando
alguns pontos acerca do que nós, seres humanos, seríamos, fundamentalmente, em
termos antropológicos ou metafísicos, exploraremos algumas implicações destas
teorias para o conceito de pessoa,
especialmente para um conceito de que pessoa
como sujeito de uma vida mental
individual.
Tooley
Segundo Michael Tooley,
decisões morais difíceis envolvendo tirar a vida, como em casos de eutanásia
voluntária, suicídio, aborto e pesquisa com embriões, podem ser melhor
resolvidas se a nossa reflexão disto estiver informada por um conceito crítico
de pessoa, um que seja claro em seus termos fundamentais e por isso,
especificado em componentes distintos. Tal esclarecimento conceitual, em si,
não é normativo, mas meramente filosófico ou teórico. Tooley acredita que um conceito
crítico de pessoa nos levaria a ver outros animais não-humanos (como gorilas,
chimpanzés e orangotangos), como pessoas, se levamos em conta nosso
conhecimento atual de suas capacidades psicológicas (através do estudo do seu
comportamento e da sua neurofisiologia), tais como os membros adultos e normais
de nossa própria espécie.
Por outro lado, esse
mesmo conceito de pessoalidade implicaria que há seres humanos que não são
pessoas, como no caso de embriões humanos em laboratório, e outros que o são apenas
potencialmente, como embriões humanos em uma gestação desejada. Também haveria
seres humanos que já foram pessoas um dia, mas não o são mais, como humanos com
perda definitiva das capacidades do córtex cerebral, ou, suponhamos, em estado
vegetativo permanente. Tanto no caso da ética quanto no caso da antropologia e
da etologia animais, ganharíamos com uma compreensão mais determinada do que
torna algo, um alguém (uma pessoa), e podemos chamar isso de metafísica da
pessoa.
Para Tooley, uma pessoa
é essencialmente um ser capaz de autoconsciência e racionalidade suficientes
para levar a vida do seu ponto de vista subjetivo e tomar decisões próprias. É
um agente autoconsciente, racional e autônomo. Uma noção deste tipo poderia
contribuir, também, para a compreensão de quem somos nós, do que nos torna
especiais, e de qual estatuto moral é apropriado a seres assim, ou seja, quais
direitos e deveres morais nós temos mutuamente enquanto agentes racionais e
autônomos.
McMahan
Jeff McMahan sustenta
que temos duas estratégias para identificar e esclarecer quem somos e o que nos
torna especiais: identificar propriedades intrínsecas (que ele designa como
não-relacionais) que nos distingam de outros entes; ou, identificar
propriedades extrínsecas ou relacionais que nos tornariam especiais. A primeira
pode ser de dois tipos: tais propriedades seriam metafísicas (não-naturais); ou
seriam empíricas (naturais). A estratégia mais conhecida do primeiro tipo é a
que entende que somos seres especiais dada a presença de uma alma imortal, alma
que seria o que somos essencialmente, ou que nos pertenceria como atributo
juntamente com o corpo próprio. Todos os seres humanos seriam ou teriam uma
alma imortal, mas não os outros animais e mesmo, outros seres vivos. MacMaham
considera tal concepção insustentável racionalmente.
Primeiro, tal
reivindicação não seria observável diretamente ou sequer embasada
empiricamente, e teria pouca ou nenhuma base para ser sustentada racionalmente.
Em segundo lugar, qualquer versão robusta da existência deste tipo de entidade
(a alma – cuja versão comum ou não-robusta é simplesmente uma forma de
descrição, em linguagem antiga, do fenômeno biológico da vida vegetal, animal e
pessoal, em geral), não seria compatível com o que nós sabemos hoje do cérebro
e da consciência (dos nossos estados mentais). Por exemplo, segundo MacMaham,
sabemos hoje que os estados mentais dependem do funcionamento físico natural do
nosso cérebro, e que não há nenhum vestígio da consciência após a morte do
córtex cerebral. Poderíamos, talvez, adotar uma noção da alma humana como algo
totalmente separada da consciência ou dos estados mentais, porém, esse seria um
terceiro problema.
Em terceiro ligar, se
nos recusamos a ver em tais estados os meios que expressam ou revelam nossa alma,
então nossa noção se tornou totalmente arbitrária e sem controle lógico e
factual mínimo, seja para nos distinguir dos outros animais, seja de quaisquer
seres de quem afirmássemos não ter ou ser almas imortais. Ou seja, como
poderíamos afirmar que eles também não possuiriam uma alma se não podemos
ancorar nossa a nossa própria em nada de observável ou ao menos empiricamente
plausível, e que pudesse ser evidenciado em nós, mas não nos outros animais ou
nestes outros seres?
McMahan pensa também
que, se ainda assim aceitamos que a noção de uma alma imortal em nós seja
realmente verdadeira, então tal idéia não embasaria apenas a visão tradicional
e antropocêntrica da importância exclusiva dos seres humanos, e esse seria um
quarto aspecto crítico da visão de que somos ou temos almas imortais, [4] pois
se os seres humanos tem uma alma imortal, eles permanecerão ou continuarão
existindo após a morte, enquanto que os outros animais, que não a possuem, só
teriam essa única vida mortal, o que poderia ser usado para defender
normativamente que os animais é que tem uma vida especial, para ser protegida
contra o assassinato.
Também não somos no
entanto, organismos biológicos, ou seja, animais. Por que? Se somos organismos,
então o nosso começar se identifica
com o de um organismo; o nosso fim, com o final
de um organismo. Assim, começamos a existir como um zigoto ou ao menos, como um
embrião ou feto não sensciente; e deixamos de existir apenas após nossa morte
(um organismo continua a existir após a sua morte biológica), como cadáver. Mas
nenhuma das duas implicações são fáceis de se aceitar reflexivamente.
Uma resposta a isso
consiste em negar que um organismo continua a existir após a sua morte, o que
há são os restos sem vida de um animal que não mais existe. Mas o que seriam
estes restos? (respostas possíveis: a) uma nova entidade; algo que estava lá
todo o tempo mas não era idêntico ao organismo vivo – mas seriam então duas
entidades físicas?-; b) uma única entidade física mais abrangente do que o
organismo vivo – seria então uma fase e não uma substância? Qual a substância,
corpo físico?; c) um conjunto de células que não formam um organismo. Mas todas
são mais estranhas que o senso comum: o organismo morto em estado de
decomposição. (Como eles se relacionariam com o organismo vivo antes da morte?)
Quando um organismo
morre ele passa por uma tremenda transformação, a de vivo para morto, e,
excetuando sua obliteração, ele continua a existir por um período limitado de
tempo na forma de um cadáver. É difícil aceitar que estamos presentes, exceto
se acreditamos em uma alma presente no cadáver, já não existimos ou não estamos
mais presentes após a nossa morte.
Uma resposta é que isso
confunde o que somos com o que temos capacidade de imaginar como seria existir
naquela situação (“what is it like to be a corpse?”). Mas não há apenas estas
dificuldades para a visão biológica: há casos em que acreditamos que
existiríamos em outra entidade inteiramente diferente, como no caso do
transplante de cérebro.
Transplante
de cérebros
Quais os destinos do
organismo após ter seu cérebro retirado? A morte; um transplante de tronco
cerebral e suporte artificial para se manter vivo sem consciência; um
transplante do conjunto do cérebro, vindo a ser um pessoa inteiramente
diferente.
O organismo original
continua a existir em todos os destinos, na cama ao lado da sua, no centro
cirúrgico! Mas você seria um indivíduo separado e distinto do seu organismo
original: ora, isso significa que você não era idêntico ao seu organismo. Se
não é idêntico agora, não pode ter sido antes, pois para ser idêntico você não
pode deixar de ser você – cessar de existir – e ainda continuar a existir.
Uma resposta é que o
destino do organismo sem cérebro é o nosso destino: o corpo, sem cérebro, somos
nós e o outro corpo continua sendo ele mesmo, porém com uma nova vida mental,
similar à vida mental do primeiro. Isso significa que não sobrevivemos ao
transplante. Mas não há razão para pensar isso. Dizer é diferente de aceitar as
implicações sinceramente: veja o teste da escolha entre viver um ano como o
mesmo organismo e viver 30 anos como uma réplica da sua vida mental em um
diferente organismo. O que você escolheria?
Outra resposta é que o
cérebro (que é o centro de controle mais essencial em um organismo) seria um
organismo do qual os outros órgãos vitais foram retirados. Mas o que dizer dos
“restos” retirados? Não são “o organismo”? E se ele se mantém vivo (com suporte
artificial) e mantém circulação, metabolismo, crescimento, resposta imune, e
mesmo, reprodução? E o novo organismo? Um organismo dentro de um organismo? Ou
dois organismos foram fundidos em um só?
Outro argumento:
transplante do hemisfério cerebral. Ele não é um organismo (o controle de suas
funções regulatórias está no tronco cerebral!). Neste caso, mesmo que o cérebro
seja um organismo, a pessoa não é o organismo se ela sobrevive ao transplante.
Bicéfalos
Quando temos dois
cérebros em um mesmo organismo, podemos dizer que temos apenas um organismo,
mas duas pessoas ou dois indivíduos separados e distintos. Nenhuma das duas
pessoas é mais idêntica ao organismo do que outra. Então na verdade, nenhuma é
idêntica ao organismo biológico. Mas, se entidades que são organismos dicéfalos
não são pessoas idênticas ao organismo, nós também não o somos, pois não faz
sentido que sejamos diferentes destas pessoas.
(1) Uma alternativa
seria afirmar que há apenas um organismo e uma pessoa, mas isso é negar a
realidade de uma das pessoas, e teria a implicação de que matar uma delas não é
matar a pessoa. (2) Outra é que haja um organismo com duas vidas mentais, dois
centros de consciência, mas isso também nega a realidade pessoal de uma das
pessoas presentes e teria a mesma implicação ruim que anterior. (3) Alternativa
mais promissora seria dizer que há dois organismos sobrepostos, mas isso
valeria mais para siameses com pouca partilha de órgãos e partes, e pouco
plausível no caso de limitada duplicação dos órgãos e com funcionamento deles
como uma unidade para ambas as cabeças (como no caso Hensel). Há a morte de
apenas um organismo. (4) Haveria dois organismos porque uma cabeça seria um
organismo sem as outras partes normais. Mas um avião com dois mecanismos de
controle seria dois aviões. O sistema orgânico do caso Hensel funciona de modo
unitário, mas há duas biografias presentes. Imagine o caso de duas cabeças
somente a partir do pescoço.
Genoma
Humano
Esta teoria sobre o que
nos constitui e nos torna seres especiais e importantes, o tipo chamado de
naturalista, tem uma estratégia muito popular que consiste, segundo MacMahan,
na aceitação e defesa da suposição “genômica”: todos os seres humanos são
geneticamente membros da espécie humana, mas nenhum dos outros animais ou seres
vivos. É difícil entender que tal concepção seja levada a sério, pois parece
que está afirmando que todos seríamos especiais porque somos especiais, ou que
humanos são humanos! O que haveria exatamente de especial em ser um ser humano?
Nesta versão, a simples pertença à mesma espécie seria fonte de valor
intrínseco, o valor de um organismo individual com um genoma humano. O que
conta aqui é seu simples estatuto (status)
físico.
Porém, alega MacMaham,
tal versão também se expõe a sérios problemas: a complexidade física e
biológica de uma formiga adulta é muito maior do que a de um grupo de células
humanas muito simples, mesmo do embrião humano nos seus primeiros dias; uma
única célula humana, como uma célula da pele ou do cabelo, também é geneticamente
humana, mas é contra-intuitivo ou ao menos estranho que tenha valor intrínseco
ou algo especial só por causa disso; ter tais genes não nos compromete
necessariamente com a espécie humana, pois pode haver animais melhorados (enhanced) geneticamente a ponto de terem
muitos genes humanos; a definição de uma espécie é parte da biologia, e não da
ética, e pode-se ainda questionar porque a espécie por si mesma tem importância
moral.
Por fim, pode ser
sustentado que não somos idênticos aos organismos biológicos que parecemos ser,
o nosso organismo animal propriamente dito, mas que apenas dependemos deste
organismo para existir como entes com outras propriedades essenciais, como as
propriedades psicológicas de nossa vida mental e histórica biográfica (nossas
ideias, sentimentos, memórias, planos, ordem biográfica, valores, decisões
persistentes, por exemplo), o que torna as propriedades biológicas predicadas
de nós apenas indiretamente ou por extensão, e neste sentido, teriam muito
menos importância do que as propriedades (psicológicas) predicáveis
diretamente.
Há um experimento de
pensamento que MacMaham utiliza para questionar definitivamente, em seu
entender, qual seria a importância do genótipo humano. Ele nos lembra que 98,4%
de nossos genes já estão em qualquer chimpanzé. Então pode-se também perguntar:
mas o que pensaríamos se encontrássemos um super-chimpanzé melhorado
geneticamente que tenha os genes responsáveis pelas nossas capacidades
cognitivas mais elevadas? Ele não seria ainda um ser humano, mas, claramente,
teria nossas capacidades psicológicas, por exemplo, de pensar e agir
racionalmente (seria uma “pessoa” no sentido de Tooley).
Como poderíamos
desconsiderar sua importância só por não pertencer a nossa espécie? Daí um
sexto ponto crítico: experimentos como este (com animais transgênicos) abalam a
noção de que a importância está realmente nos genes, pois um animal com tais
genes ainda seria um chimpanzé mesmo se tivesse nossas capacidades
psicológicas, mas teria de ser visto como que possuindo menos importância. Pois
um chimpanzé com apenas 1% de genes humanos seria ainda um membro da espécie
dos chimpanzés, mas, supondo que sejam os genes responsáveis pelas capacidades
cognitivas e emocionais mais elevadas dos humanos, ele teria o que parece ser
mais valioso em se ser um membro da espécie humana.
Se o que contasse,
então, fosse pertencer à espécie, tal super-chimpanzé não teria o mesmo status
moral de um humano que tivesse 99% de genes humanos, exceto aquele 1%
responsável pela psicologia pessoal, e isso parece altamente contra-intuitivo
ou ao menos logicamente estranho. Se há algo para explicar a importância de
pertencer ao genótipo humano é que tal genótipo pode produzir fenotipicamente a
vida psicológica que ele produz. O que realmente interessa, diz MacMaham, é o
fenótipo (as características fenotípicas, particularmente as psicológicas).
Assim, um sétimo ponto crítico aparece.
Pertencer à espécie é
um fato puramente descritivo, como pertencer a uma raça ou a um gênero sexual:
algo por si ainda meramente arbitrário. Está claro que são as capacidades
psicológicas as que distinguem os membros humanos, e é porque há uma correlação
entre a espécie e tais capacidades que tal distinção faz algum sentido, mas
tais capacidades não são invariantes em relação à espécie, nem invariantes
dentre os membros individuais da espécie.
Assim, se concordamos
com MacMahan, podemos concluir duas coisas: (a) que ser ou possuir uma alma
imortal seria uma diferença significativa para dizer quem somos e porque somos
importantes, mas nós não somos tal coisa ou não temos tais almas (e se
fôssemos, não teríamos nenhuma base para negar isso a outros seres); (b) por
outro lado, o fato de todos os indivíduos humanos pertencerem à espécie humana
é uma diferença realmente existente e observável, mas algo metafísica e
moralmente irrelevante por nem explicar nem justificar nada, se separada das
nossas capacidades psicológicas. Resta então que o que torna especial e
importante um dado organismo animal ou ser vivo é vivenciar tais capacidades.
Psicologia
Voltando a Tooley, as
propriedades psicológicas genericamente aglomeradas e que normalmente nos fazem
pensar que estamos diante não de uma coisa (uma pedra, por exemplo) ou de um
ser vivo não-pessoal (uma planta, por exemplo), mas de uma pessoa ou de alguém,
seriam: (1) consciência, (2) preferências, (3) desejos conscientes, (4)
sentimentos, (5) experiências de prazer e dor, (6) pensamentos, (7)
autoconsciência, (8) capacidade para o pensamento racional, (9) senso de
temporalidade, (10) capacidade de relembrar suas ações e seus estados mentais
passados, (11) certa antevisão de um futuro para si próprio, (12) presença de
interesses não-momentâneos, (13) uma unidade temporal dos próprios desejos,
(14) capacidade de deliberação racional, (15) escolhas morais possíveis, (16)
traços de caráter que não mudam repentina e caoticamente, (17) interação
social, (18) comunicação com os outros.
Mas quais são
suficientes? Todas são necessárias? E se não, e se há mais de uma, como
combiná-las? Sugiro que há ao menos quatro modos de destacarmos o elemento
essencial ou suficiente do que provavelmente nos constitui e nos torna
importantes, do que nos faz uma pessoa:
1
- Sermos sujeitos-de-uma-vida-mental-individual, uma que nos torna capazes
não só de estar no mundo, mas de percebê-lo subjetivamente (componentes 1 a 5 acima);
2
Sermos sujeitos individuais autoconscientes, unificados por uma memória
passada individual e por desejos presentes e futuros conscientes e duradouros,
sendo tal memória e desejos duradouros o que faz a ligação entre quem fomos no
passado e quem somos no presente, de maneira a sermos, em regra, a mesma pessoa
(componentes 1 a
7);
3
Sermos sujeitos individuais autoconscientes, racionais e autônomos,
capazes de pensamento abstrato e lógico, deliberação prudencial, interação e
comunicação social complexa com outros seres similares (componentes 1 a 14);
4
Sermos agentes morais individuais, ou seja, indivíduos racionais e
autônomos capazes da agência moral (componentes 1 a 18).
As sugestões de que não
somos especiais por causa da alma imortal nem somos especiais por causa da
pertença à espécie humana reforçam a ideia de que somos essencialmente algo
intermediário entre tal entidade metafísica não-natural (uma alma) e o organismo
animal (um corpo vivo). Seríamos algo ao menos intrinsecamente ligado às
propriedades e capacidades psicológicas que constituem nossa vida mental ou
nossa biografia propriamente dita. Se chamarmos isso de pessoa, somos
essencialmente pessoas. Parfit e Glover, na esteira de Locke, sugerem que nossa
psicologia é o que essencialmente nos constitui: nossa biografia. Somos pessoas
apenas nos sentidos mais restritos dos grupos II a IV de características (ver
acima).
Pessoas?
A continuidade psicológica é o critério da
identidade pessoal: P1 e P2 são a mesma pessoa se P1 é psicologicamente
contínuo com P2. A continuidade psicológica é necessária,
mas não suficiente para a identidade: pode haver ramificação: então, mesmo
havendo continuidade, não haverá identidade (veja o caso da divisão de A em B e
C pelo transplante cerebral de um hemisfério de A, a cada um).
No caso da divisão (transplante dos hemisférios
separados) se sustenta que as seguintes opções não são aceitáveis: (a) que A é
idêntico a B e a C (pois isso implicaria que B e C são idênticos, o que não é o
caso); (b) que A é idêntico a um dos sobreviventes, mas não ao outro (pois não
há diferença entre B e C que justifique a opção; isso vale para a opção: que A
é ou um ou outro, mas não sabemos qual; (c) que A não é nem B nem C, e sim o
corpo inconsciente do qual foram removidos os hemisférios (A sobrevive no
transplante e parece viver ambas as vidas posteriores: suponha que só há B, por
exemplo. Logo, a existência de C não pode anular as razões para A estar em B e
se preocupar egocentricamente (como se fosse si mesmo) com B!).
A solução de Parfit: rejeitar a suposição normalmente não
questionada de que a identidade pessoal fornece a base para a preocupação
egocêntrica sobre o futuro. (Normalmente se pensa que é racional se preocupar
egocentricamente sobre o que vai ocorrer com alguém se esse alguém é você
mesmo: Parfit nega isso, e A está justificado em se preocupar egocentricamente
com o futuro de B e de C, mesmo não sendo ambos, B e C. Só não está
presente a identidade, todo o resto que é importante (as conexões psicológicas:
memórias, desejos, crenças e projetos intencionais) está presente: logo, a identidade
não é o que importa, ainda que na prática identidade e preocupação
egocêntrica coincidam).
A
abordagem psicológica se divide em duas teorias: uma da identidade e uma da
prudência (preocupação egoística). Conectividades psicológicas e continuidade
psicológica (identidade) são as bases da preocupação egoística a primeira
relação é questão de grau. Para Parfit: (a) a identidade não é o que importa (e
devemos separar identidade pessoal e teoria da preocupação consigo – egoistic
concern); (b) a identidade pessoal é constituída por relações de
continuidade psicológica; (c) as relações de unidade prudencial se compõe de
conectividade psicológica e continuidade psicológica; e além disso, (d) a
melhor interpretação do caso da divisão é que P1 cessa, de um modo especial, de
existir (dupla sobrevivência é cessar de existir e ao mesmo tempo não é
morte!). MacMahan concorda com (a), mas discorda de (b) e (c).
Para Parfit, uma pessoa
é um ser que deve ser autoconsciente, consciente de sua identidade e de sua
existência continuada temporalmente: sem autoconsciência não haveria como
ocorrer a conectividade forte entre alguém consigo mesmo em dado lapso
temporal. Assim, se a autoconsciência cessa ou ainda não começou, a pessoa
cessou de existir ou ainda não começou.
Pré-pessoas e Pós-pessoas
Porém,
desde os estágios avançados da gestação e imediatamente após o nascimento há
uma vida mental mais ou menos contínua associada com o organismo, há uma certa
continuidade de consciência – como uma memória rudimentar (a criança reage
diferentemente às música que ela ouviu no útero materno) e vários eventos
conscientes gerados todos nas mesmas
área do mesmo cérebro.
Se
a abordagem psicológica está correta, este ser consciente presente antes e logo
após o nascimento não era “você mesmo” (oneself), que ainda não existia
pessoalmente. Quem ele era? O que aconteceu com ele?
R
1: mera série de eventos mentais gerados pelo funcionamento do organismo: só
com o aparecimento da pessoa é que haverá um indivíduo distinto do organismo
biológico. Porém, é o organismo ele próprio que se torna consciente, sente,
percebe, pensa, e assim por diante, de modo que na medida em que se torna mais
complexo e rico nesta vida mental, é o organismo que se torna uma pessoa. Se
isso procede então ser uma pessoa é uma fase na história do
organismo. (pessoa é um nome para o organismo, durante uma certa fase de
sua história), mas essa é a teoria anterior, de que somos essencialmente
organismos.
R
2: algum tipo de pré-pessoa ou sujeito subpessoal de consciência que começa a
existir quando o organismo se torna capaz de sustentar a atividade mental, mas
que cessa de existir quando uma pessoa
vem a existir. Porém, essa é uma hipótese extravagante (e uma teoria é menos
plausível quanto mais entidades ela inventa para postulá-la).
O
mesmo tipo de problema ocorre com a postulação de uma pós-pessoa, um tipo de
sujeito subpessoal de consciência que não seria o próprio sujeito anterior (à
degeneração do Alzheimer, por ex.): nós teríamos medo e preocupação com “este”
ser que aparece após deixarmos de ter vida pessoal, e este medo e preocupação
seriam auto-interessados e prudenciais.
Quando se descarta a visão
biológica normalmente se aceita uma versão psicológica que nos identifica como
pessoas, seres com capacidades cognitivas, emocionais e volitivas superiores às
formas mais simples e rudimentares de consciência. Quem seria o responsável por
atos bons ou ruins senão a pessoa que pode ser identificada como mentora dos
atos? Mas traços de caráter, memórias, desejos formam um feixe de conteúdos
psíquicos que seríamos nós, essencialmente.
Cérebros
e mentes
Isso porém parece não ser o caso: podemos imaginar
duplicações destes mesmos conteúdos em um outro organismo precedido da
destruição do nosso e não pensamos que passamos a existir na réplica. Além
disso, se somos pessoas associadas ao organismo, e se o organismo é consciente
e senciente por causa de seu sistema nervoso e de seu cérebro, teríamos dois
seres sobrepostos em cada organismo que revelasse também um provável ser
pessoal. Isso está ligado à ideia estranha de que não somos animais, não
começamos existir a não ser em torno de dois anos de idade, e não continuamos a
existir se não temos mais conexões psicológicas com nosso passado ou perdemos
tais traços cognitivos superiores, mas como relacionar então uma pessoa com o
feto e o recém nascido que precede o aparecimento da pessoa, e com o ser humano
posterior à vida com capacidades psicológicas, como o paciente com Alzeimer?
Há respostas para todos esses argumentos, muitos
continuam e continuarão a sustentar alguma destas visões. Mas há uma que está
entre a visão biológica e a visão psicológica, é a que entende que somos
essencialmente sujeitos de uma vida mental realizada pelo - ou no - nosso
cérebro. McMahan a chama de mente incorporada. Para tomar o caso da demência
progressiva, quando nosso cérebro deixar de gerar consciência nós teremos
deixado de existir, pois não haverá mais um sujeito de experiência ou alguém no
organismo.
"Isto sugere que você é essencialmente uma entidade com a capacidade
"Isto sugere que você é essencialmente uma entidade com a capacidade
para
consciência - uma mente. Um organismo humano é consciente
somente
em virtude de ter parte consciente. Nós somos aquela parte. Nós
somos aquilo que é não derivadamente o sujeito da consciência." (McMahan, Killing
Embryos for stem cell research, 2007: 186)
Essa visão está de acordo com os resultados das ciências,
das neurociências em especial, e é filosoficamente bem sustentada, então é
melhor do que a metafísica (almas). A visão mentalista também pode incorporar
os atrativos da visão psicológica, pois uma mente como a nossa, em situação
normal, é uma pessoa, com a vantagem de relacionar-se melhor com a suposta
pré-pessoa e a suposta pós-pessoas nos casos dos fetos e de pacientes dementes,
ser intuitivamente mais adequada nos experimentos de pensamento, e praticamente
biológica, pois assim como alguém pode nos chamar de mentes, alguém (o ET de
Varinha, por exemplo) também pode nos chamar de cérebros ou córtex cerebrais.
Nossa identidade é essencialmente a de
uma mesma mente produzida pelo mesmo cérebro (a mente é
individuada por referência a sua incorporação física, ainda que isso seja
apenas condição necessária, mas não suficiente para que a mesma mente
continue). Vimos que o que mais conta nos experimentos de pensamento sobre
replicação não é a continuidade dos conteúdos de nossa vida psicológica, mas a
continuidade ou “mesmidade” desta
nossa capacidade de ter consciência.
Podemos falar de 3 tipos de continuidade
de nosso cérebro: continuidade física (os mesmos constituintes materiais ou
gradual substituição destes no tempo), funcional (relações do cérebro com
capacidades psicológicas como a consciência) e organizacional (preservação dos
tecidos cujas configurações subjazem conexões e continuidades entre os conteúdos psicológicos). Para a
abordagem psicológica, não precisamos pressupor a continuidade física se
pudéssemos manter a organizacional. Para a abordagem da mente incorporada
precisamos, pois é uma condição suficiente para a preocupação egocêntrica, e,
logo, grosso modo, para a nossa identidade.
Porém, se somos mente ou cérebro, nós não seríamos
animais, e novamente, temos um tipo de dualismo: um animal e uma mente, mas o
animal é quem sente, pensa, percebe. Então há dois seres conscientes?
Supercomputadores provavelmente desenvolverão mentes, então seremos como eles,
e como possíveis extraterrestres (o ET de Varginha, por exemplo)? Isso soa
contraintuitivo, pois novamente, não somos animais, mas parte de um animal ou
meramente constituídos por um animal. Mas então o que somos precisamente? Há
ainda o problema do método dos experimentos de pensamento, eles não dizem
necessariamente que somos uma mente ou uma pessoa, mas que nos identificamos
como tais em situações deste tipo, mas disso não se segue que realmente sejamos
uma mente ou uma pessoa.
Para McMaham, porém, somos uma parte de um
organismo (o córtex cerebral): como a buzina e o carro (a buzina emite som e o
carro emite som com ela!) e o galho e a árvore (o galho cresce e a árvore
cresce com ele!), é meu organismo que sente, pensa e percebe, mas com a parte
consciente que realiza tais eventos, o organismo é consciente em sentido
derivado; a parte não é o mesmo que o todo e por isso eu não sou idêntico ao
organismo que eu animo [não sou um organismo mentalizado] nem sou constituído
por um organismo, e posso manter minha integridade e identidade ao lado do todo
orgânico (sou uma entidade distinta e independente do organismo).
* * * *
Questões para fixação:
1) Se
somos essencialmente almas, como se responde a essas questões: Qual seria sua natureza? Quais razões
para pensar que uma alma existe? Como se compatibiliza com a natureza dos
outros animais semelhantes a nós e quando na história evolutiva (seguindo aqui
o darwinismo) passou a existir? Por que as capacidades conscientes e psíquicas
são afetadas pelo que acontece com o cérebro? O que acontece com a alma quando
o embrião humano de divide formando gêmeos idênticos ou se funde, formando
quimeras? E quando uma operação de comissurotomia produz dois centros de consciência
em uma mesma pessoa?
2) Considerando
os dois argumentos principais contra a visão de que somos organismos, tente
imaginar algumas possíveis respostas a eles, que defendam a visão e a tornem
mais forte.
3) Explique
a diferença entre a abordagem psicológica e a cerebral da identidade.
4) Como
a abordagem cerebral trata do problema “duas entidades em um mesmo corpo”?
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