quarta-feira, 20 de março de 2019

A ética é relativa à sociedade? A resposta e justificação de Peter Singer, abaixo

A ética não é relativa à sociedade(Peter Singer*)

“A quarta e última afirmação sobre a ética que refutarei neste capítulo de abertura é a de que a ética é relativa ou subjetiva. Pelo menos refutarei estas afirmações em alguns dos sentidos em que são frequentemente tomadas. (...)

A forma mais fundamental de relativismo tornou-se popular no século XIX, quando começaram a surgir dados referentes às crenças morais de sociedades distantes. Para o puritanismo severo da época vitoriana, a notícia de que havia lugares onde as relações sexuais entre pessoas não casadas eram encaradas como perfeitamente normais trouxe a semente de uma revolução das atitudes sexuais. Não admira que para algumas pessoas essa informação sugerisse não apenas que o código moral da Europa do século XIX não era objetivamente válido, mas também que nenhum juízo moral pode fazer mais do que refletir os costumes da sociedade que o gera. Os marxistas adaptaram esta forma de relativismo às suas teorias. As ideias dominantes de cada período, afirmavam, são as ideias da sua classe dominante e, portanto, a moral de uma sociedade é relativa à sua classe economicamente dominante e, por esse motivo, indiretamente relativa à sua base económica. Daí que refutassem triunfalmente as pretensões de objetividade e validade universal das morais feudal e burguesa. Mas isto levanta um problema: se a moral é relativa, o que há de especial no comunismo? Por que razão haveria alguém de tomar o partido do proletariado, e não o da burguesia?

Engels abordou este problema da única forma possível: abandonando o relativismo em favor de uma tese mais restrita que defendia que a moral de uma sociedade dividida em classes será sempre relativa à classe dominante, embora a moral de uma sociedade sem antagonismos sociais pudesse ser "realmente humana". Aqui já não há relativismo, mas é ainda o marxismo que, de uma forma meio confusa, impulsiona muitas ideias relativistas vagas.

O problema que levou Engels a abandonar o relativismo também refuta o relativismo ético comum. Quem quer que tenha passado por uma decisão ética difícil sabe que, se lhe disserem o que a sociedade pensa que ele deve fazer, isso não resolve a dificuldade. Temos de tomar as nossas próprias decisões. As crenças e os costumes no seio dos quais fomos criados podem exercer grande influência sobre nós, mas, assim que começamos a refletir sobre eles, tanto podemos optar por agir de acordo com essas crenças e esses costumes como contra eles.

A perspectiva oposta -- a de que a ética é sempre relativa a uma determinada sociedade -- tem consequências muito improváveis. Se a nossa sociedade condena a escravatura enquanto uma outra a aceita, não temos bases para escolher entre ambas as perspectivas antagónicas. Na realidade, numa análise relativista não existe conflito entre elas. Quando digo que a escravatura é um mal, estou apenas a dizer que a minha sociedade a rejeita; e quando os escravagistas da outra sociedade dizem que a escravatura é um bem, estão apenas a afirmar que a sua sociedade a aprova. Para quê discutir? É óbvio que ambos estaríamos a dizer a verdade.

Pior ainda, o relativista não consegue explicar satisfatoriamente o inconformista. Se "A escravatura é um mal" significa "A minha sociedade rejeita a escravatura", nesse caso qualquer pessoa que viva numa sociedade que a aceita está a cometer um erro factual quando diz que a escravatura é um mal. Uma sondagem poderia então demonstrar o erro de um juízo ético. Os candidatos a reformadores ficam numa posição terrível: quando pretendem modificar as perspectivas éticas dos seus concidadãos, estão necessariamente errados; só quando conseguem conquistar a maioria da sociedade passam as suas opiniões a estar certas. Estas dificuldades são suficientes para afundar o relativismo ético (...)

(*SINGER, Peter. “Sobre a ética”. Ética Prática. Lisboa, Gradiva, 2000)

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