Aula 2 – Parte B - Curso de Bioética – 2012
Roteiro/Resumo baseado no livro The Ethics of Killing, de Jeff McMahan
Prof. Alcino Eduardo Bonella
[Este parte do capítulo – 3.1.- 3.4. - problematiza as visões
de que começamos a existir na concepção e de que somos propriamente um
organismo biológico. Segue um roteiro das ideias principais]
(3). Are we organisms?
3.1. When Does a Human Organism Begin to Exist?
Este subitem problematiza a visão de que começamos a existir
na concepção com o fenômeno dos gêmeos monozigóticos: ou um organismo não se
inicia na concepção, mas apenas quando as células perdem a totipotência e começam a se diferenciar, se especializando
e interagindo, e a possibilidade de duplicação termina. Ao menos alguns
indivíduos não começariam na concepção, mas um pouco mais tarde, o que é
contraintuitivo (não parece fazer sentido que façamos luto pelar perda de
alguém; é implausível supor que o organismo original sobreviva como uma dos
dois, mas o outro não; pode-se dizer que também é implausível dizer que um
organismo deixou de existir para dar lugar a outros dois, pois não há nada
perdido ou que pereceu – não há morte sem cadáver). McMahan no entanto não vê
problema em dizer que um organismo pode deixar de existir sem morrer, o que
ocorreria na divisão.
Há ao menos duas interpretações de quando o organismo surge
no processo reprodutivo:
(a)
na concepção, desde o zigoto, e suas sucessivas
divisões, que são todos eventos de uma mesma história singular de um indivíduo,
fases no crescimento e desenvolvimento daquele indivíduo (as células deixam de existir, mas não o indivíduo constituído por estas
células, que continua a existir através daquelas transformações, dentro da
zona pelúcida). [cf. p. 27];
(b)
para uma segunda interpretação, não há nada que continue
a existir ou que persista quando as células embrionárias totipotentes se
dividem e perfazem transformações: somente
quando as células se diferenciam, assumem
funções especializadas, são organizadas e integradas entre si para constituir
um indivíduo, é que poderia haver um organismo biológico que permanece.
A segunda interpretação não pode ser desconsiderada
(considere a analogia dos habitantes de uma ilha sem interação entre si) e é incompatível com a tese da concepção
como o primeiro passo de um organismo.
3.2 Organisms,
Embryos, and Corpses.
Se somos organismos, então o nosso começar se identifica com o de um organismo; o nosso fim, com o final de um organismo. Assim, começamos
a existir como um zigoto ou ao menos, como um embrião ou feto não sensciente; e
deixamos de existir apenas após nossa morte (um organismo continua a existir
após a sua morte biológica), como cadáver. Mas nenhuma das duas implicações são
fáceis de se aceitar reflexivamente.
Uma resposta a isso consiste em negar que um organismo continua
a existir após a sua morte, o que há são os restos sem vida de um animal que
não mais existe. Mas o que seriam estes restos? (respostas possíveis: a) uma
nova entidade; algo que estava lá todo o tempo mas não era idêntico ao
organismo vivo – mas seriam então duas entidades físicas?-; b) uma única entidade
física mais abrangente do que o organismo vivo – seria então uma fase e não uma
substância? Qual a substância, corpo físico?; c) um conjunto de células que não
formam um organismo. Mas todas são mais estranhas que o senso comum: o
organismo morto em estado de decomposição. (Como eles se relacionariam com o
organismo vivo antes da morte?)
Quando um organismo morre ele passa por uma tremenda
transformação, a de vivo para morto, e, excetuando sua obliteração, ele
continua a existir por um período limitado de tempo na forma de um cadáver. É
difícil aceitar que estamos presentes, exceto se acreditamos em uma alma
presente no cadáver, já não existimos ou não estamos mais presentes após a
nossa morte.
Uma resposta é que isso confunde o que somos com o que temos
capacidade de imaginar como seria existir naquela situação (“what is it like to
be a corpse?”). Mas não há apenas estas dificuldades para a visão biológica: há
casos em que acreditamos que existiríamos em outra entidade inteiramente
diferente, como no caso do transplante de cérebro.
3.3 Brain
Transplantation.
Quais os destinos do organismo após ter seu cérebro
retirado? A morte; um transplante de tronco cerebral e suporte artificial para
se manter vivo sem consciência; um transplante do conjunto do cérebro, vindo a
ser um pessoa inteiramente diferente.
O organismo original continua a existir em todos os
destinos, na cama ao lado da sua, no centro cirúrgico! Mas você seria um
indivíduo separado e distinto do seu organismo original: ora, isso significa
que você não era idêntico ao seu organismo. Se não é idêntico agora, não pode
ter sido antes, pois para ser idêntico você não pode deixar de ser você –
cessar de existir – e ainda continuar a existir.
Uma resposta é que o destino do organismo sem cérebro é o
nosso destino: o corpo, sem cérebro, somos nós e o outro corpo continua sendo
ele mesmo, porém com uma nova vida mental, similar à vida mental do primeiro.
Isso significa que não sobrevivemos ao transplante. Mas não há razão para
pensar isso. Dizer é diferente de aceitar as implicações sinceramente:
veja o teste da escolha entre viver um ano como o mesmo organismo e viver 30
anos com sua vida mesma mental mas em um diferente organismo. O que você
escolheria?
Outra resposta é que o cérebro (que é o centro de controle
mais essencial em um organismo) seria um organismo do qual os outros órgãos
vitais foram retirados. Mas o que dizer dos “restos” retirados? Não são “o
organismo”? E se ele se mantém vivo (com suporte artificial) e mantém
circulação, metabolismo, crescimento, resposta imune, e mesmo, reprodução? Eu sou dois então? E o
novo organismo? Um organismo dentro de um organismo? Ou dois organismos foram
fundidos em um só?
Outro argumento: transplante apenas do hemisfério cerebral. Ele não
é um organismo (o controle de suas funções regulatórias está no tronco
cerebral!). Neste caso, mesmo que o cérebro seja um organismo, a pessoa não é o
organismo se ela sobrevive ao transplante. (A pessoa é esta parte consciente, o córtex).
Outro argumento: organismos bicéfalos.
3.4. Dicephalus.
Quando temos dois cérebros em um mesmo organismo, podemos
dizer que temos apenas um organismo, mas duas pessoas ou dois indivíduos
separados e distintos. Nenhuma das duas pessoas é mais idêntica ao organismo do
que outra. Então na verdade, nenhuma é idêntica ao organismo biológico. Mas, se
entidades que são organismos dicéfalos não são pessoas idênticas ao organismo,
nós também não o somos, pois não faz sentido que sejamos diferentes destas
pessoas.
(1) Uma alternativa seria afirmar que há apenas um organismo
e uma pessoa, mas isso é negar a realidade de uma das pessoas, e teria a
implicação de que matar uma delas não é matar a pessoa. (2) Outra é que haja um
organismo com duas vidas mentais, dois centros de consciência, mas isso também
nega a realidade pessoal de uma das pessoas presentes e teria a mesma
implicação ruim que anterior. (3) Alternativa mais promissora seria dizer que
há dois organismos sobrepostos, mas isso valeria mais para siameses com pouca
partilha de órgãos e partes, e pouco plausível no caso de limitada duplicação
dos órgãos e com funcionamento deles como uma unidade para ambas as cabeças
(como no caso Hensel). Há a morte de apenas um organismo. (4) Haveria dois
organismos porque uma cabeça seria um organismo sem as outras partes normais.
Mas um avião com dois mecanismos de controle seria dois aviões. O sistema
orgânico do caso Hensel funciona de modo unitário, mas há duas biografias
presentes. Imagine o caso de duas cabeças somente a partir do pescoço.
* * * *
1) Quais
são as duas interpretações da natureza do zigoto e suas subdivisões celulares,
até a diferenciação celular começar? Qual você acha mais adequada e por que?
2) Considerando
os dois argumentos principais contra a visão de que somos organismos, tente
imaginar respostas a McMahan, que defendam a visão e a tornem mais forte.