O problema mais impressionante para a crença em Deus
é o chamado problema do mal. Trata-se do problema da incompatibilidade entre a
existência de males e sofrimento abundantes e gratuitos, e a existência de um
Deus todo poderoso e sumamente bondoso. A grande quantidade, e elevada
magnitude, de sofrimento e danos naturais (tsunamis, terremotos, fomes
endêmicas, etc.) ou sociais (genocídios, guerras, crimes hediondos etc.) aparentemente
gratuitos, de que são vítimas seres humanos, especialmente crianças e idosos,
além de outras criaturas senscientes, como os animais não humanos, parece ser
incompatível com a crença em um Deus de amor.
O
chamado argumento a partir do mal é mais ou menos assim: Premissa 1) Se
houvesse um Deus onipotente e sumamente bondoso, então não haveria males e
sofrimentos como os citados acima. Premissa 2) Ora, há tais males. Conclusão:
Logo, não há um Deus onipotente e sumamente bondoso. Como em todo argumento
válido, a verdade das premissas implicará na verdade da conclusão. Assim, para
a conclusão ser falsa, a premissa 1 ou a 2 (ou ambas) tem de ser falsa. Por
exemplo, pode ser que não seja o caso que existir um Deus bondoso implique que
não haja o mal no universo (e a premissa é seja falsa). Ou pode ser que não
exista o mal (e a premissa 2 seja falsa).
Uma
primeira tentativa é recusar a premissa 2. Negar que haja o mal horrendo, ou um
que seja abundante e gratuito. Normalmente filósofos e teólogos admitem a
realidade do mal, e não questionam esta premissa. Seria contra intuitivo negar
que a morte de 1 milhão e meio de crianças judias em campos de concentração
nazistas, ou a morte de duzentas mil pessoas, sem contar animais, num tsunami no
sudoeste da Ásia, ou o sofrimento e agonia de bilhões de animais até hoje desde
seu aparecimento, não sejam males horrendos e males sem sentido. Assim, em
geral se tenta encontrar alguma forma de compatibilizar a existência de um Deus
onipotente e bondoso, com a existência dos males horrendos no universo.
Mas esta segunda
tentativa, de recusar a premissa 1, não tem muito que a recomende
racionalmente. Suponha que há um orfanato. Neste orfanato falta de tudo e as
crianças passam necessidades. Mas há uma porta fechada na qual está inscrito
Diretor. As crianças e os funcionários nunca viram o diretor, nem abriram a
porta, que está trancada. Mas mesmo assim, acreditam que ele existe, tem tudo
sob controle, conhece a situação do orfanato, e é uma pessoa muito bondosa. Mas
se ele existe, é bom, e pode solucionar os problemas do orfanato, por que não o
faz? Parece mais sensato duvidar que ele realmente exista. Assim também, diante
do mal horrendo, parece mais sensato duvidar que um Deus onipotente e bondoso
exista.
Pense nesta forma
invertida de explicar o argumento, que chamarei de argumento do bem contra a
existência de um Deus malévolo. Se existe um Deus malévolo, então por que
existe o bem? Não será o bem ao menos um indício forte de que um tal ser assim não
existe? Em geral pensamos que Deus é bom exatamente porque há tanta coisa boa
no universo. Mas se você pensa assim, você tem de também pensar que os males e
sofrimentos abundantes e desnecessários são um indício forte de que não existe
um Deus onipotente e bondoso. O argumento do mal é o mais difícil problema para
quem crê em Deus, e para quem pondera se deve ou não acreditar.
Ao que tudo indica, o problema do mal relacionado a existência de Deus só é resolvido dentro das tradições religiosas, tomando em conta seus textos sagrados. Se tomarmos a Bíblia cristã como exemplo, o problema do mal e da existência de Deus é explicado por meio do grande conflito que se iniciou quando o personagem Lúcifer, que era um anjo de luz, exaltou-se e quis ser maior que Deus, questionando a Sua supremacia e a Sua bondade, como lê-se em Isaías 14:12-14 ("Como caíste desde o céu, ó Lúcifer, filho da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações!
ResponderExcluirE tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte.
Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo") e em Ezequiel 28:12-17 (Filho do homem, levanta uma lamentação sobre o rei de Tiro, e dize-lhe: Assim diz o Senhor DEUS: Tu eras o selo da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura.
Estiveste no Éden, jardim de Deus; de toda a pedra preciosa era a tua cobertura: sardônia, topázio, diamante, turquesa, ônix, jaspe, safira, carbúnculo, esmeralda e ouro; em ti se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram preparados.
Tu eras o querubim, ungido para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas.
Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniquidade em ti.
Na multiplicação do teu comércio encheram o teu interior de violência, e pecaste; por isso te lancei, profanado, do monte de Deus, e te fiz perecer, ó querubim cobridor, do meio das pedras afogueadas.
Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti".). Nesses textos não aparece uma explicação para o por quê de ter surgido a iniquidade no coração de Lúcifer, que a partir de então se tornou Satanás, mas explica-se que a partir da rebelião formada por ele no céu, um terço dos anjos foi lançado à terra (Apocalipse 12:4, Daniel 8:10), e passaram a ter como missão afrontar a Deus e a tudo o que Ele havia criado em perfeição, também chamados "anjos caídos" ou "espíritos enganadores".
Dentro dessa leitura do texto bíblico, a existência do mal não prova a não existência de Deus, mas a existência de Satanás, que levou a humanidade a pecar, e ao entrar o pecado no mundo, toda a natureza, inclusive os animais não-humanos, que sofrem e gemem (Romanos 8:22) até que Jesus volte para dar fim ao grande conflito e ao mal e ao sofrimento no mundo, conforme lê-se em Apocalipse 21:3-4 ("E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus.
E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas".) ou em Isaías 11:6-9 ("O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará.
A vaca se alimentará com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi.
A criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora.
Ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo monte, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar".).
Por isso estou estudando MacIntyre, em seus últimos escritos ele defende que muitas respostas que buscamos na área da ética estão dentro das comunidades, dentro das tradições, como essa questão da existência do mal, que cada tradição traz uma explicação. Indicação de leitura que estou fazendo: Dependent Rational Animals.